A questão da felicidade está sempre sendo discutida, está nas rodas de conversas de amigos, na mídia, nos livros, assim eventualmente ela se desgasta, perde o fio e a devida profundidade. A sabedoria antiga da felicidade nos ensina a desejar e amar o que está ao nosso redor. Nos ensina a dizer um belo “sim” à vida. Uma felicidade profunda e permanente se torna possível também quando transformamos a maneira como vemos o mundo. Então descobrimos que a felicidade e a infelicidade não dependem somente de causas externas, como bens materiais por exemplo, mas também do nosso estado de ser. A definição de felicidade está cheia de paradoxos, pois ela é subjetiva para cada indivíduo, nas diferentes épocas e também nas culturas ao redor do mundo. A felicidade então deve ser vista com uma grande lente, o que torna difícil a resposta das perguntas “você está feliz?” ou “você ama a vida que está levando?”. Somos condicionados, mas não determinados por vários fatores para ser mais ou menos felizes. A tal “busca da felicidade” não é uma busca sem sentido. Realmente podemos ser mais felizes se pensarmos em nossas vidas, se refletirmos, se trabalharmos em nós mesmos, se aprendermos a tomar decisões mais sensatas e a imaginar como queremos nos colocar no mundo.
Mas existe uma receita para a felicidade? Essa é uma das ilusões sobre os estudos da felicidade, já que muitas vezes ela assume o aspecto de coisas que não temos: saúde para quem está doente; trabalho para quem está desempregado; moradia para quem está desabrigado; etc, ou ainda por dimensões mais subjetivas, como os artistas que ficam felizes quando praticam sua arte, intelectuais quando lidam com suas ideias e conceitos ou dos românticos quando estão apaixonados. Sigmund Freud, irá esclarecer que a constituição psíquica do indivíduo é um componente decisivo nesse cenário.
O escritor Pascal Bruckner oferece uma provocação: “Amo demais a vida para desejar ser feliz para sempre”. Existem também questionamentos sobre a busca da felicidade, sendo um dos motivos a desconfiança intelectual na felicidade, especialmente a vulnerabilidade. Para discutir adequadamente a felicidade é necessário expor muitos dos nossos planos pessoais, envolvendo a intimidade do indivíduo, nossas emoções, sentimentos, desejos, crenças e sentido que damos às nossas vidas, diferente se o debate fosse a partir da teoria do conhecimento, hermenêutica, políticas públicas, entre outras.
Uma confusão constante sobre a felicidade é a relação dela com o prazer e a alegria. Quantas pessoas acreditam que felicidade é somente alegria ou somente prazer? O prazer pode ser efêmero. Assim sendo, se não nos nutrirmos constantemente com os estímulos externos do prazer, ele se esgota com o tempo. É por isso que o excesso não é recomendado. O prazer por si só não é um bom guia para a vida e felicidade, já que seria necessário uma vida de constantes prazeres, algo irreal. Sêneca, filósofo estoico da antiguidade, refletiu sobre o prazer de ter, “uma abundância de bens não apenas pode ser desnecessária à felicidade, mas também potencialmente prejudicial quando produz ansiedades”. No caso da alegria, ela pode ser analisada de algumas maneiras: como uma emoção intensa (a alegria quando seu time de futebol vence ou de encontrar um amigo por exemplo) ou como um sentimento mais permanente, em que nosso ser mais profundo está submergido. Essa segunda alegria não é passageira, mas se relaciona com a nossa existência. É o resultado de um processo de revelação, como algo que é trazido de dentro para fora. Isso envolve uma certa limpeza da maneira como vemos o mundo, retirando alguns obstáculos que bloqueiam esse percurso que está em nós. Não estou aqui afirmando que o prazer e a alegria não sejam importantes para compor a felicidade. Estou dizendo que apenas o prazer e/ou alegria não são suficientes.
Outro componente muito relevante da autêntica felicidade é o significado. O médico Victor Frankl escreveu “… os seres humanos são fundamentalmente movidos pela busca de significado”. Precisamos de percursos de vida para seguir, mesmo que muitas vezes seja preciso nos desviar em nossa jornada. Todavia, precisamos ser verdadeiros com nós mesmos para que o significado verdadeiro se hospede em nossa vida. Essa autenticidade testa nossos pontos fortes e fracos, corrigindo e melhorando o nosso mundo interior, equalizando o que precisa ser mudado, mas não distorcendo ou frustrando nosso ser mais profundo.
Em grego, a palavra eudaimonia, que foi traduzida como felicidade, pode ser entendida como “tendo um bom daimon”. Hoje em dia, diríamos “ter um anjo da guarda” ou “nascer sob uma estrela da sorte”. Em francês, bonheur vem do latim bonum augurium: “boa fortuna” ou “boa sorte”. Em inglês, felicidade vem da raiz islandesa happ, “sorte” ou “chance”, entendendo o elemento sorte também como um componente da felicidade. Independente da tradução que fazemos, a jornada para a felicidade também é uma jornada filosófica de sabedoria, em especial usando a razão e a vontade, podendo aumentar nosso índice de felicidade. Assim, muitos filósofos ao longo da história se debruçaram sobre esse tema nos encorajando para a possibilidade de uma boa vida. A propósito, muitos filósofos da antiguidade acreditavam que essa era a principal razão de ser da filosofia. Epicuro, filósofo ateniense do período helenístico, destaca que no estudo da filosofia o prazer e a alegria acompanham o conhecimento crescente, porque o prazer e a alegria não seguem o aprendizado, mas a aprendizagem, o prazer e a alegria caminham lado a lado. Busque a felicidade, mas não de forma rasa, entendo que existem vários componentes que sustentam o estado de ser chamado felicidade. Esse empenho pela boa vida irá ampliar o horizonte do tema e certamente te deixará com mais sabedoria.
Prof. Me. Ives Alejandro Munoz
Filósofo, com estudos em ética e neurociência, educação ética e de caráter, sabedoria e felicidade. Membro do Núcleo de Ética e Felicidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (NEPEF/AMBULIM- IPqHCFMUSP).
Instagram: @ivesalejandro.
Referências:
FRANKL, V. E. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 1985.
SELIGMAN, M. Florescer: uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2011.
SÊNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.