Ao contrário do que se pensa, pessoas transgêneros (ou trans) não se encontram dentro de uma lógica cisgênera na infância e, portanto, os sofrimentos psico-sociais iniciam-se a partir desta fase. A educação de gênero, o ensino das características e comportamentos masculinos e femininos de acordo com o gênero designado ao nascimento, é difundida não só no meio familiar, mas também em todos os âmbitos sociais nos quais uma criança está inserida; como igreja, escola e afins. Com isso, as violações de identidade de uma criança trans ocorrem desde cedo.
Além disso, o não entendimento da Identidade de Gênero e/ou desenvolvimento do adolescente LGBTQIA+ dentro de um ambiente que possui estigmas sociais relacionados à expressão, corporeidade ou identidade “não tradicional” juntamente a um tabu familiar de se falar sobre o fato em questão: podem levar a um direcionamento de críticas e discussões sobre a expressão do gênero do adolescente relacionada à forma corporal. O que aumenta as chances de uma percepção negativa sobre o corpo focando na variável: peso (Gordon et al. 2016).
“No início da puberdade, intensifica-se uma relação complexa estabelecida entre a criança ou adolescente púbere e seu corpo não congruente com sua identidade de gênero, podendo levar a sofrimento psíquico intenso e condutas corporais relacionadas a tentativas de esconder os caracteres sexuais biológicos visando reconhecimento e aceitação social que, muitas vezes, provocam agravos à saúde”. (Conselho Federal de Medicina, 2019)
Dentre essas tentativas, estão inseridas as alterações do comportamento alimentar associadas à modulação corporal e a possível evolução para Transtornos Alimentares (TA). No estudo de Gordon et al. (2016), as participantes relataram uma associação entre o medo da rejeição familiar, alimentação e controle de peso.
A População Trans é composta por pessoas transfemininas (Mulheres Transgêneros, Travestis e Não-binárias), transmasculinos (Homens Trans e Não-binários) e Não-binários. Barros et al. (2019) identificou em seu estudo que indivíduos de gênero não binário possuem uma melhor satisfação com a aparência e com o corpo do que indivíduos trans que se identificam com o gênero masculino ou feminino exclusivamente, podendo indicar que não se enquadrar na perspectiva binária de gênero pode diminuir as chances de sofrer com o cissexismo e experiências de disforia de gênero.
As mulheres trans possuem maior predisposição à insatisfação corporal, comer transtornado e transtornos alimentares (Diemer et al. 2015), em razão de poderem experimentar disforia de gênero com consequente insatisfação corporal associada a necessidade de afirmação de feminilidade. As integrações das normas de feminilidade assumem uma importância muito mais significativa, além das ligadas a disforia de gênero, como uma forma de diminuir a discriminação, aumentar segurança e garantia de sobrevivência destas. (Barros et al. 2019; Gordon et al. 2016). De acordo com relatos na National Eating Disorders Association (NEDA), homens transgêneros são propensos ao desenvolvimento de comportamentos de controle de peso e anorexia nervosa pré afirmação de gênero.
É relevante ressaltar que o acompanhamento multiprofissional com utilização de hormonização e/ou procedimentos cirúrgicos podem atenuar e prevenir a disforia de gênero e possivelmente, por conseqüência, o risco de desenvolvimento de TA.
“Apesar do DSM-5 ter utilizado o termo “disforia de gênero” em substituição a “transtorno de identidade de gênero”, que constava na versão anterior (DSM-IV-TR) e representava patologização da identidade de gênero, é importante ressaltar que disforia de gênero não é sinônimo de transgeneridade, transexualidade ou travestilidade e que nem todas as “pessoas trans” apresentam esse sofrimento” (Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, 2020).
No entanto, a falta de conhecimento social e na área da saúde sobre as vivências e experiências de pessoas trans auxilia na perpetuação do estigma social, da discriminação e dos riscos de saúde aos quais estes indivíduos estão inseridos; como dificuldade de acesso à educação superior, ao mercado formal de trabalho, a acompanhamentos gerais em saúde, rejeição familiar e social, e demais. O que impacta consideravelmente não só o comportamento alimentar, mas a saúde integral de pessoas trans.
Glossário
Orientação Sexual: Indica por qual/quais gêneros uma pessoa se sente atraída física e/ou apenas afetivamente. São exemplos de orientação sexual: Heterossexual, Homossexual, Assexual, Pansexual e Bissexual.
Identidade de Gênero: Identificação e reconhecimento de cada indivíduo sobre seu próprio gênero. A qual, não possui nenhuma relação com a orientação sexual.
Transgêneros: Indivíduos que não se identificam com o gênero/sexo designado ao nascimento. Transgênero ou Trans é um termo geral para as identidades de gênero: Mulher Trans, Travesti, Homens Trans, Agênero, Não-binaries e Gênero Fluído.
Cisgêneros: Indivíduos que se identificam com o gênero/sexo designado ao nascimento; homens e mulheres.
Disforia de Gênero: Grande sofrimento psíquico relacionado à incongruência entre o gênero de identificação do indivíduo e o gênero/sexo designado ao nascimento.
Ísis Gois
Mulher Trans. Nutricionista graduada pela Universidade de Taubaté. Possui Aperfeiçoamento Ambulatorial em Nutrição e Saúde Coletiva pela Universidade de Taubaté. Aluna especial no Programa de Saúde Pública ENSP/FIOCRUZ cursando disciplina isolada: Corporalidade e Violência. Cursa especialização em Comportamento Alimentar. Voluntária no Ambulatório de Dietética e Alimentos Funcionais da Universidade Federal Fluminense e ministra palestras referentes à saúde, gênero e sexualidade. Instagram: @isisgois.nutri.
Referências:
Barros LO, Lemos CRB, Ambiel RAM. (2019). Qualidade de vida e satisfação com a imagem corporal de transexuais. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 71(1), 184-195.
Conselho Federal de Medicina. Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero e revoga a Resolução CFM nº 1.955/2010.Resolução Nº 2.265, de 20 de setembro de 2019.
Diemer EW, Grant JD, Munn–Chernoff MA et al. (2015). Gender Identity, Sexual Orientation, and Eating-Related Pathology in a National Sample of College Students. The Journal of adolescent health: official publication of the Society for Adolescent Medicine, 57(2), 144–149.
Gordon AR, Austin SB, Krieger N et al. (2016) “I have to constantly prove to myself, to people, that I fit the bill”: Perspectives on weight and shape control behaviors among low-income, ethnically diverse young transgender women. Social Science & Medicine, 165:141-149.
São Paulo (SP). Secretaria Municipal da Saúde. Coordenação da Atenção Primária à Saúde. “Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo”, Secretaria Municipal da Saúde|SMS|PMSP, 2020: Julho – p. 133.