O Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, é a data comemorativa de um movimento histórico pela equiparação de direitos e de luta contra todas as formas de discriminação e violência sofridas pelas mulheres. Nos EUA, na primeira metade do século XIX, mulheres se uniram pela primeira vez para brigar pelo direito de discursar em eventos pela abolição da escravidão. No início do século XX, mulheres americanas e europeias se engajaram na busca por condições mais humanas de trabalho e pelo direito ao voto. No Brasil, o movimento se destacou primeiro na luta pelo voto, capitaneado pela bióloga Bertha Lutz e pela militante anarquista Maria Lacerda de Moura.
Helen Todd, líder feminina ligada ao movimento operário nos EUA, fez um famoso discurso, em 1911,no qual dizia que “a mulher é o elemento maternal no mundo e seu voto irá no sentido de ajudar a avançar o tempo em que o Pão da vida, que é o lar, abrigo e segurança, e as Rosas da vida, música, educação, natureza e livros, serão a herança de toda criança que nasce no país, em cujo governo ela tem voz”.
Ano após ano, quase toda a publicidade da semana da mulher traz imagens de flores como homenagem gentil, saudando a delicadeza e a feminilidade das homenageadas. De lutas, pouco se fala.
Para a comunidade de transtornos alimentares (TA) – pessoas afetadas, seus familiares, amigos e amores, profissionais e estudiosos – proponho uma reflexão sobre slogan de Helen Todd e as lutas que nos movem.
Os TA são doenças de origem multifatorial, isto é, seu surgimento decorre da interação de múltiplos fatores genéticos, biológicos, psicológicos, socioculturais e familiares1. Apesar da literatura mais recente mostrar que a diferença entre os sexos é menor do que antes se estimava, os TA afetam mais mulheres que homens ao redor do mundo2.
Um dos aspectos que podem contribuir para essa diferença é a maneira como o corpo feminino foi historicamente visto e tratado. Tidas como fisicamente frágeis e mentalmente inferiores aos homens, as mulheres tinham pouca ou nenhuma liberdade para decidir sobre a própria vida. Escrevendo sobre a anorexia mirabilis, ou anorexia santa, um fenômeno medieval em que mulheres jejuavam ou só se alimentavam da hóstia para emular o sofrimento de Jesus Cristo e alcançar a elevação espiritual, a historiadora americana Catherine Bynum destacou que abstinência de comida não tinha um significado apenas religioso, mas era também uma forma de aquelas meninas e mulheres controlarem a família e o meio social, evitando casamentos arranjados ou a maternidade3. Se nada estava a seu controle, comer ou deixar de comer era algo sobre o qual apenas elas tinham agência.
Por mais que as mulheres tenham transformado seu lugar na sociedade, conquistado direitos, entrado – e em algumas áreas, até dominado – o mercado de trabalho e adquirido o controle da função reprodutiva, o olhar contemporâneo para o corpo feminino continua sendo o olhar daobjetificação,que reduz a mulher à aparência física e atratividade sexual. A pressão pela magreza e pela juventude pode ser sentida desde meninas em idade pré-escolar até mulheres em seus últimos anos de vida. O descontentamento com o próprio corpo é regra e uma fonte de receitas inesgotável para as indústrias da dieta e da beleza. Como escreveu Naomi Wolf4, a obsessão pela aparência é também uma ferramenta de controle das mulheres. Estar permanentemente em dieta é gastar tempo, dinheiro e energia para alcançar um objetivo inalcançável, posto que sempre alterado pela “próxima tendência”. É estar anestesiada para as “Rosas da vida”.
O tema da campanha de 2021 da plataforma InternationalWomen’s Day5 é #ChooseToChallenge, ou “Escolha Desafiar”. A cultura de dieta é parte inseparável do processo de surgimento e manutenção dos TA. Desafiá-la é uma missão constante. Questioná-la, um exercício diário. Neste 8 de março, desafiemos a proibição do Pão e saibamos reconhecer, muito além da aparência do corpo, as Rosas.
Camila Lafetá Sesana
Nutricionista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e aprimorada em transtornos alimentares pelo AMBULIM-HCFMUSP. Atua como nutricionista voluntária do PROTAD (Programa de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência) no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP e em consultório particular. É professora colaboradora nos cursos de Aprimoramento em Transtornos Alimentares para Nutricionistas e Aprimoramento Interdisciplinar em Transtornos Alimentares do AMBULIM-HC-FMUSP e do Instituto de Nutrição Comportamental. Colaborou em capítulos de livros sobre transtornos alimentares e psiquiatria da infância e adolescência. É membro do Genta (Grupo Especializado em Nutrição, Transtornos Alimentares e Obesidade) e da Academy for Eating Disorders. Instagram: @camila.lafeta.
Referências: