“Fulana exibe barriga chapada apenas um mês após dar à luz”; “Aos 45 anos, atriz posta selfie e fãs se surpreendem com ausência de rugas”; “Cantora deixa celulites à mostra durante férias e recebe críticas na Internet”. Diariamente, somos bombardeadas com notícias desse tipo, com foco na aparência feminina.
Há pouco mais de 10 anos, esse tipo de conteúdo ficava restrito aos veículos de mídia tradicionais, como sites, revistas e TV. Com a chegada e rápida ascensão das redes sociais – especialmente as baseadas em imagem, como Instagram e TikTok – o que não falta é material sobre esses temas.
Sim, porque agora esse tipo de conteúdo tem nome, sobrenome e arroba. Nós, do lado de cá da telinha do celular, temos acesso 24 horas (se assim desejarmos) às rotinas infinitas de skincare, dietas, treinos na academia, cirurgias plásticas, procedimentos estéticos e “looks do dia”.
Tudo isso é transmitido de forma divertida, bonita e atraente, de modo que, entre dancinhas para exibir os resultados de uma lipo HD e vídeos de “tudo que eu como em um dia” você dedica ali duas, três ou até mais preciosas horas.
O foco excessivo na aparência feminina nos prejudica em muitas esferas; entre elas, a nossa saúde mental. Não existe um entendimento coletivo de que o que vemos nas redes é algo impraticável na “vida real”, porque o excesso de informação que vemos nos feed não nos permite uma interpretação mais aprofundada de cada imagem.
O contexto em que vivem os grandes influencers remunerados por alcance e por likes não corresponde ao da maioria das pessoas. E por esse motivo, não deveríamos nos comparar. Mas quem consegue?
Comparação: uma fonte inesgotável de autodepreciação
Diversos estudos relacionam o uso exagerado das redes sociais à insatisfação corporal[1], baixa autoestima, ansiedade e depressão[2]. Isso sem contar os distúrbios alimentares[3], que cresceram substancialmente durante a pandemia. Um artigo da Harvard[4] lista alguns possíveis motivos para isso, como a mudança de rotina durante o confinamento, a perda da conexão regular com amigos, insegurança alimentar, tédio e a própria ansiedade ligada ao Covid-19.
As redes sociais reforçam essa lista, uma vez que nosso tempo de tela aumentou[5] e, por longos meses, assistir coreografias e desafios de TikTok virou uma das principais fontes de entretenimento para muita gente.
A comparação com os corpos “perfeitos” que vemos por lá é quase inevitável. Para as mulheres, isso é mais latente porque historicamente somos mais validadas pela imagem do que os homens. Mas isso não apaga o sofrimento com imagem corporal que eles também vêm demonstrando nos últimos anos.
O fato é que, para as mulheres, se manter dentro do padrão é quase como uma estratégia de sobrevivência. Por isso, ao não se encaixar, nos questionamos. Por que fulana já exibe um tanquinho pós-gravidez e eu ainda não? Por que tenho linhas de expressão aparentes? Será que não cuido suficientemente da minha pele? Por que eu não consigo me livrar das celulites?
São comparações e questionamentos desse tipo que alimentam uma indústria milionária de procedimentos estéticos e produtos de beleza. Não à toa, o Brasil figura em segundo lugar no ranking de países que mais realizam cirurgias plásticas em todo o mundo[6].
A insatisfação corporal é lucrativa e atinge mulheres de todos os tamanhos, idades, classes sociais e profissões. E falo isso com propriedade após dedicar os últimos anos à pesquisa e escrita do livro-reportagem “Além do Like – O que está por trás da nossa eterna busca de aprovação por meio da imagem“.
Conversei com especialistas na área de educação física, nutrição e psicologia. Reuni depoimentos reais de 40 mulheres sobre suas relações com seus corpos. Pude constatar que essa baixa autoestima decorrente da comparação e das cobranças escancaradas pelo padrão de beleza vigente gera consequências físicas, psicológicas, financeiras e sociais.
No que se refere ao campo da saúde física, vemos pessoas cada vez mais perdidas entre as próprias sensações de fome e saciedade. Há tanta desinformação nas redes que a culpa e a preocupação exagerada com o que comer soam como algo “normal”. Frases como “a nutri deixou”, legendando a foto de um sorvete ou de um bombom, por exemplo, soam engraçadinhas nas redes. Mas, no fundo, escondem a vã tentativa de controlar com rigidez um ato tão instintivo quanto comer.
E essa necessidade de controle é internalizada, em muitos casos, ainda na infância.
Muitos dos depoimentos que ouvi começavam assim: “a primeira dieta que eu fiz, eu ainda era criança, pois minha mãe estava preocupada com meu peso“. Eu entendo de onde vem essa preocupação, e ela é legítima, mas o fato é que aprender tão cedo a restringir pode acarretar uma relação conflituosa com a comida por toda uma vida. O ideal seria aprendermos a lidar com sentimentos, vontades, sensações e limites, evitando assim entrar no vicioso ciclo de restrição-desejo-compulsão, observado com frequência por nutricionistas que atuam na área comportamental.
O mesmo se aplica à atividade física: a obsessão pela queima calórica muitas vezes vence a batalha na hora de se escolher uma modalidade. Assim, as pessoas seguem se frustrando em rotinas com as quais não se identificam, apenas porque ouviram dizer que é dessa forma que atingirão o tal “corpo de Instagram”.
Arrasta pra cima
Enquanto houver lucro, haverá “cuponzinho de desconto” e “arrasta pra cima” de ofertas dos mais variados (e bizarros) milagres de emagrecimento – na grande maioria das vezes, sem embasamento científico algum. Enquanto a nossa sociedade for obcecada por imagem, haverá permutas e mais permutas, “cirurgiões” colocando a vida de mulheres em risco; e toda sorte de procedimentos para ficarmos com a aparência da vez (que, claramente, muda de tempos em tempos).
O fato é que as redes sociais não vão simplesmente deixar de existir. A resposta está, volto a dizer, em como interpretamos o que vemos por lá. E mais: em como educamos nossas crianças e adolescentes para que consumam essas redes com olhar mais crítico. Para que não pautem sua autoestima pela aparência, mas sim, pelo que o corpo é capaz de fazer.
Ter uma autoimagem positiva é, sim, algo importante. É satisfatório gostar do que vemos diante do espelho! Mas para ter uma autoestima verdadeira é preciso que consigamos abraçar nossa essência, nossas particularidades. Em que somos boas? Quais são os nossos talentos? Que legado queremos deixar nesse mundo?
É todo esse conjunto de coisas que nos diferencia como seres humanos, e que muitas vezes nem enxergamos porque estamos cegas pela superficialidade da imagem e da padronização. Para sair desse ciclo, é preciso investir pesado em autoconhecimento, em uma jornada que não é nem um pouco simples.
Mas percorrer essa jornada priorizando a nossa saúde física e mental certamente vale bem mais do que um milhão de likes.
Livro: Além do Like – O que está por trás da nossa eterna busca por aprovação por meio da imagem
Por que as mulheres estão cada vez mais insatisfeitas diante do espelho? Os padrões de beleza atuais afetam quase todas – até mesmo as que se encaixam. As revistas, o cinema, a TV e as redes sociais, com seus filtros e corpos “perfeitos”, são combustíveis para a crescente pressão estética. Esse é o tema principal do livro-reportagem “Além do Like”, fruto de uma ampla pesquisa da jornalista Dani Barg. A autora reuniu entrevistas com especialistas (nutricionistas, psicanalistas, psicólogas, educadoras físicas) e estudos atuais sobre os temas abordados. Também ouviu 40 depoimentos de mulheres – desde ex-modelos, atrizes globais, youtubers e influencers, até as que não têm a própria imagem como ferramenta de trabalho, como professoras, publicitárias, estudantes, empresárias e donas-de-casa. Em comum, todas já tiveram/têm que lidar com frustrações e traumas ligados às cobranças sobre o corpo. Link para compra do livro: https://loja.quintaledicoes.com.br/pd-922742-alem-do-like.html?ct=&p=1&s=1.
Danielle Barg
Jornalista brasileira radicada em São Francisco, Califórnia. Trabalha com produção de conteúdo há mais de 20 anos e já escreveu sobre diversos temas, como saúde, gastronomia, turismo, moda e beleza. A linha que sempre ligou sua trajetória profissional é o interesse por tudo que envolve o comportamento humano. Em 2014, começou a escrever sobre nutrição e comportamento alimentar, o que evoluiu para um interesse maior sobre a conexão entre as escolhas alimentares e doenças contemporâneas, como distúrbios alimentares, distorções de imagem e outros problemas relacionados à enorme pressão estética atual. Nos últimos anos, tem pesquisado e escrito sobre saúde mental, pressão estética, padrões de beleza e o impacto das mídias sociais na imagem corporal – especialmente entre as mulheres. Instagram: @daniellebarg. Site: www.danibarg.com.
Referências:
[1] Compared to Facebook, Instagram use causes more appearance comparison and lower body satisfaction in college women
http://bodyandmedia.com/pdfs/2020_instavsfb.pdf
[2] #STATUSOFMIND – Social media and young people’s mental health and well- being. Royal Society for Public Health (RSPH). Disponível em: https://www.rsph.org.uk/our-work/campaigns/status-of-mind.html
[3] Global Proportion of Disordered Eating in Children and Adolescents https://jamanetwork.com/journals/jamapediatrics/article-abstract/2801664?guestAccessKey=a38cfc7b-1823-446c-a623-8be829a285ce&utm_source=For_The_Media&utm_medium=referral&utm_campaign=ftm_links&utm_content=tfl&utm_term=022023
[4] Eating disorders in teens skyrocketing during pandemic
https://www.hsph.harvard.edu/news/hsph-in-the-news/eating-disorders-in-teens-skyrocketing-during-pandemic/
[5] Changes and correlates of screen time in adults and children during the COVID-19 pandemic: A systematic review and meta-analysis
https://www.thelancet.com/journals/eclinm/article/PIIS2589-5370(22)00182-1/fulltext
[6] The Latest Global Survey from ISAPS Reports a Significant Rise in Aesthetic Surgery Worldwide
https://www.isaps.org/discover/about-isaps/global-statistics/reports-and-press-releases/global-survey-2021-full-report-and-press-releases/