Contradições das realizações em nossos tempos

Sabe aquelas promessas de Ano Novo?

Quem de nós nunca se propôs a mudar tudo no ano seguinte, tornando-se uma pessoa “exemplar”, organizada, disciplinada, se comprometendo a fazer ginástica todos os dias, a terminar dois ou três cursos ao longo do ano, a comprar algo muito desejado(que o amigo tem e postou no Instagram), a fazer uma viagem para um paraíso com dias perfeitos e ensolarados? A ler todos os livros importantes que os “amigos do Facebook” indicam e dizem ter lido? A guardar dinheiro todos os meses para comprar o carro dos sonhos? A conseguir a esperada promoção que vai financiar tudo isso? Enfim, esta poderia ser uma lista infindável de promessas de mudança, de desejos de estar de um outro jeito, ou de estar em um outro lugar e até num outro tempo… Mas quão realistas elas são? Quão relevantes para nossa felicidade e realizações?

E falando em tempo, o final de ano acaba realmente trazendo a “marcação do fim de um período”. O artifício criado pelo próprio homem, de formatar o “etéreo tempo”, dando a ele este jeitão concreto e cronológico, que o divide em anos, em meses, em dias, em horas, minutos e segundos, faz com que tenhamos a constatação de que o tal tempo é um recurso finito, embora às vezes nos esqueçamos disso. Zimbardo & Boyd (2009), em seu instigante livro “O paradoxo do tempo”, ponderam que existe uma linha, que delimita nossa própria existência e nosso tempo pessoal, que une nosso nascimento à nossa morte, e que ela vai sendo preenchida pelos acontecimentos, dentro deste tempo cronológico, pontuado pela passagem dos aniversários. Ainda de acordo com estes autores, as “categorias de tempo ajudam a dar ordem, coerência e significado às nossas vidas”, eles destacam que diariamente tomamos pequenas e até banais decisões sobre o que comer, o que vestir, no que trabalhar, com quem estar, que quando colocadas em perspectiva mais ampla, vão definindo quem somos enquanto pessoas e o que estamos fazendo com nosso tempo e com nossas vidas. São relevantes reflexões que nos estimulam a avaliar o uso que estamos fazendo de nosso próprio tempo. Que escolhas temos feito? Quanto tempo cabe no nosso tempo? Qual o melhor tempo, do nosso tempo? Quando faremos o que desejamos com nosso tempo?

Portanto, pensando desta forma, em tais escolhas, vale refletir sobre o que de fato queremos quando definimos metas para o ano que se inicia, por exemplo. Quanto o quê do que defino como objetivos corresponde às minhas necessidades individuais ou estão a serviço do atendimento de exigências culturais ou sociais de “sucesso ou realização”? Correspondem ao “medo de não ser o que estereótipos sociais pregam”? Bater metas, ser mais produtivo, obter mais prosperidade material, estes são meus valores ou foram internalizados a partir do que vejo ao meu redor no mundo real ou virtual? Correr atrás de um ideal de aparência corporal, de peso vai me levar a quê? Muitas vezes sem perceber somos conduzidos por princípios irracionais idealizados e buscamos uma suposta perfeição comportamental, psicológica e social que não existe. Pelo contrário, a busca incessante por perfeição e realização costuma levar a aumento de ansiedade, fadiga, esgotamento, frustração, além de insatisfação consigo mesmo. A autocrítica e auto exigência de algumas pessoas, quando muito elevadas fazem com que tais indivíduos só enxerguem o lado menos favorecido deles próprios e se desqualifiquem frequentemente, punindo-se por não ser aquilo que “deveriam ser”. São mecanismos psicológicos que envolvem um discurso interno baseado na auto depreciação, que muitas vezes incluem insultos e que acabam bloqueando o potencial e as capacidades de desenvolvimento e de realização pessoais. Outras vezes, são mecanismos que levam a uma compulsiva imitação, a um “viver a vida do outro”, a uma perda de identidade.

Mas, e se para o próximo Ano Novo tentássemos pensar e agir de um jeito um pouco diferente? Usando outras premissas?

Partindo do que já temos, de nossas características reais, não daquelas que “deveríamos” ter, com nossos atributos e imperfeições. Praticando e cultivando mais autoaceitação e uma valorização incondicional daquilo que somos, reconhecendo nosso valor intrínseco, que não está condicionado a padrões perfeitos de aparência, performance ou aceitação social (Riso, 2017). Mas que ainda podem evoluir e se transformar sempre.

Resoluções de início de ano também tendem a fracassar quando se baseiam só numa data e não em nossa própria prontidão e motivação para executá-las, com isso tendem a ficar no discurso, sem repercutir em mudança de comportamento (Morin, 2014).

Pode ajudar também, lembrarmos que é ótimo nos mobilizarmos por conquistas que nos animem, nos façam crescer, mas sem esquecer que mesmo estas não significam satisfação duradoura, são efêmeras e as sensações de prazer que as acompanham passam. Ensinamentos do budismo (Harari, 2016) ressaltam que a busca desenfreada e incessante pela excitação e prazer são a raiz do sofrimento humano, porque tenderíamos a viver constantemente procurando mais e mais sensações de prazer que são todas temporárias. De forma que para alcançarmos um estado de bem estar mais duradouro convém desacelerarmos, permanecendo no presente, apreciando-o, com o que ele tem.E com isso voltamos a questão do tempo… A ansiedade nos lança sempre no tempo futuro e a obsessão em torno de algo que ainda nem ocorreu nos rouba o desfrutar do presente. Por outro lado, tal presente, também nos é furtado quando ficamos presos ao passado (por vezes tomados por sentimentos de culpa, arrependimento, ou mesmo nostalgia por tempos já vividos).

Não guardar todas as minhas decisões, expectativas ou mesmo vivências importantes para quando se estará num outro lugar, numa outra situação, num outro momento, pode nos conectar mais com o lugar em que se está, no tempo presente, com aquilo que já se tem. E extrair da vida, de cada ano, de cada dia, de cada minuto ou segundo o que há de melhor seria uma forma inteligente e saudável de honrar o próprio tempo e a própria vida (Harari, 2016). E por fim, quem tal ficarmos com uma sábia citação de Charles Darwin (1809-1882, in Zimbardo & Boyd, 2009): “O seu tempo é limitado, por isso não o desperdice vivendo a vida de outra pessoa”.

Bom hoje para você!

 

 

 

Rogéria Taragano

Psicóloga clinica, Mestre em administração pela Carnegie Mellon University – EUA e em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP; com aprimoramento em Terapia Focada nas Emoções pela York University – Canadá; e especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo IPq-HCFMUSP. Supervisora no ambulatório de Anorexia Nervosa do serviço de psicologia do AMBULIM-IPq-HC-FMUSP e docente em programas de pós-graduação e especialização.Membro da Academy for Eating Disorders. [Instagram: @rogeriaoliveirataragano]

 

 

 

Referências:

Harari, Y.N. – Homo Deus – Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Morin, A. – 13 Things Mentally Strong People Don´t Do. New York: HarperCollinsPublishers, 2014.

Riso, W. – Maravilhosamente imperfeito, escandalosamente feliz. Porto Alegre: L&PM Editores, 2017.

Zimbardo, P., Boyd, J. – O Paradoxo do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

 


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