Onde estão as pessoas negras com transtornos alimentares?

O ano é 2020, mas se fizermos uma busca por imagens na internet como termo “transtornos alimentares” vamos obter resultados bem semelhantes, que fazem com que eu, enquanto nutricionista negra que trabalho com transtorno alimentar me pergunte: onde estão as imagens de pessoas negras com transtorno alimentar? O mesmo ocorre dentro dos grandes centros de referências em tratamento para transtornos alimentares: onde estão os pacientes negros com transtorno alimentar? (Inevitável pensar também nos colegas de profissão negros nesta área – onde estão? Mas essa é uma extensão do tema para discussão em outro momento).

Onde estão? Essa é a dura realidade refletida também nas plataformas de pesquisa científica. As publicações sobre transtornos alimentares em populações de raça negra são poucas. No entanto, especialmente trabalhos com metodologias qualitativas têm colocado discussões necessárias para a desconstrução de paradigmas sobre como os processos de insatisfação corporal e transtornos alimentares se dão para indivíduos negros, ou mais especialmente para mulheres negras, já que homens são tipicamente subrepresentados nos estudos sobre transtornos alimentares independente da raça.

Existem poucas teorias explicativas sobre as nuances que permeiam as associações entre a raça negra e as trajetórias de desenvolvimento dos transtornos alimentares. Mas fato é que diferenças no status socioeconômico (que interferem depois na possibilidade de acesso a tratamento), excesso de peso(que acaba sendo mais comum especialmente em mulheres negras) e maior insegurança e vulnerabilidade alimentar são grandes candidatos para estas compreensões. Até o fato de sintomas de transtornos alimentares poderem se desenvolver mais cedo em meninas negras, tem relação com um marco importante que é o início de puberdade mais precoce nestas, comparado a meninas brancas, o que sugere, por exemplo, que avaliações e programas de prevenção poderiam ser ministrados mais cedo para meninas negras.1,2 Cuidados em saúde baseados nas premissas sobre excesso de peso e puberdade mais precoce, no entanto, precisam ser bem cautelosos para não ofuscarem sintomas reais de transtornos alimentares. Isso fica exemplificado em depoimento publicado no The New York Times3 por uma escritora negra que teve transtorno alimentar por bastante tempo sem que ninguém notasse:

Além do mais: eu era negra. As narrativas sociais que posicionam a curvatura do corpo das meninas negras como um sinal de alerta de obesidade futura significa que, como mulheres jovens, muitas vezes somos parabenizadas por cuidarmos do nosso peso quando, na verdade, nossa restrição alimentar pode ser o sintoma de um problema real de saúde mental.”

Neste contexto, é importante que o paradigma das interseções entre raça, imagem corporal e do padrão de beleza negra seja desconstruído. Reconhecer como a supremacia branca moldou os marcadores tradicionais de beleza e inadequadamente influenciou as experiências de imagem corporal de outras raças é fundamental. Quando se fala de imagem corporal, as prevalências de insatisfação corporal reportadas para os negros são discutíveis2, uma vez que os instrumentos que avaliam esses aspectos são desenvolvidos e aplicados inicialmente em pessoas brancas, considerando marcadores que são importantes para este grupo e não para os negros. Isto traz representações incompletas ou mesmo imprecisas de preocupações que são únicas e relevantes para os negros.

É claro que não dá para falar de transtorno alimentar e insatisfação com imagem corporal em pessoas negras separando isto dos contextos socioculturais e do sistema racista em que vivemos.Desde cedo já não há identificação com os corpos que se vê nas mídias, e nem mesmo com o típico padrão de quem tem transtorno alimentar. A não representatividade neste caso, torna-se um obstáculo para busca por tratamento e faz com que pacientes negros tenham até crenças de que não estão tão doentes quanto os outros.

Conviver em ambientes em que são a minoria racial visível (por exemplo, centros universitários) corrobora para uma internalização de seus corpos (e aqui lembre-se: pele, cabelo etc.) como desvios da normatividade, e reforçam sensação de invisibilidade.Esses sentimentos tem nuances complexas: é possível que a invisibilidade medie experiências de racismo e comportamento excessivo (uma vez que ficar fisicamente maior pode ser visto como um meio de se tornar mais visível na comunidade); mas também que haja a busca pela reprodução do ideal branco, a fim de evitar discriminações devido ao tom da pele – uma característica racial mais imutável. Assim, se a cor da pele e traços do rosto são mais difíceis ou impossíveis de serem iguais, pelo menos características como o cabelo liso e tamanho do corpo magro dão para tentar adequar-se. É válido pontuar, que essas questões não são apenas emocionais, adequar-se ao padrão vigente traz benefícios pessoais e profissionais bem documentados, e para muitos é a chave para se ter um tratamento mais justo ou simples respeito nas interações do dia a dia.4

Ser uma pessoa negra e ter uma relação transtornada com o corpo e com a comida pode soar como uma mensagem de que algo está errado com o negro e seu corpo, mas essa pode ser só mais uma mensagem similar às tantas outras que recebemos durante toda a vida: de que nossos corpos estão todos errados.5 E por isto ser parte de um problema que é estrutural, o percurso para abordagens no cuidado de pacientes negros com transtornos alimentares mais inclusivas, que levem em consideração os atravessamentos particulares que fazem parte da construção da identidade negra e que tragam visibilidade a estes pacientes, ainda é bastante longo. Onde estão as pessoas negras com transtornos alimentares? Não estão nas principais mídias, não estão na maioria dos grandes centros de tratamento, nem em muitas pesquisas científicas… mas elas existem. E precisam de espaço adequado para serem compreendidas e cuidadas.

 

 

 

Jéssica Maria Muniz Moraes

Nutricionista formada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestra e Doutoranda em Nutrição em Saúde Pública pela FSP-USP. Técnica em Alimentos pelo Instituto Federal do Maranhão (IFMA). Aprimorada em Transtornos Alimentares pelo curso avançado do Ambulim (IPq/HCFMUSP) onde é colaboradora. [Instagram]

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

  1. Bodell, L. P., Wildes, J. E., Cheng, Y., Goldschmidt, A. B., Keenan, K., Hipwell, A. E., &Stepp, S. D. (2018). Associations between Race and Eating Disorder Symptom Trajectories in Black and White Girls. J. Abnorm. Child Psychol., 28646354. Retrieved from https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28646354
  2. Bittencourt, L.J. (2013). Padrões de beleza e transtornos do comportamento alimentar em mulheres negras de Salvador/Bahia. Universidade Federal da Bahia. Tese de doutorado. 199f. Retrievedfromhttps://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/13187
  3. Kendall, M. (2020). When Black Girls Hear That ‘Our Bodies Are All Wrong’. N.Y. Times. Retrieved from https://www.nytimes.com/2020/02/21/opinion/sunday/black-women-eating-disorders.html
  4. Capodilupo, C. M., & Kim, S. (2014). Gender and race matter: the importance of considering intersections in Black women’s body image. J. Couns. Psychol., 24188651. Retrieved from https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24188651
  5. Kendall, M. (2020). When Black Girls Hear That ‘Our Bodies Are All Wrong’. N.Y. Times. Retrieved from https://www.nytimes.com/2020/02/21/opinion/sunday/black-women-eating-disorders.html

0 resposta para “Onde estão as pessoas negras com transtornos alimentares?”

  1. Thamires Bastos disse:

    Sou nutricionista e adorei o texto, colega. Estou elaborando um projeto que discute a importância dessas questões sobre pessoas negras e transtornos alimentares e foi muito importante encontrar mais uma colega que aborda essa questão. Obrigada e Parabéns.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *