Antes de iniciar o artigo, proponho que repensemos nosso olhar e fala sobre comunidades indígenas. Termos como “índios” ou “tribos” não devem ser usados por serem preconceituosos, qualquer simplificação e generalização esvazia as singularidades de um povo, mesmo quando utilizamos palavras que são consideradas elogiosas.
“Mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo índio. Quando muito, dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição, é um apelido, e apelido que se dá para quem parece ser diferente de nós […]. Por este caminho, veremos que não há conceitos relativos ao termo, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles”, explicou o escritor indígena Daniel Munduruku, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor-presidente do Instituto UKA para o site governamental do Rio de Janeiro MultiRio.
Segundo o escritor, a mesma lógica aplica-se ao termo tribo, que tem conotação pejorativa, muito associada à comunidades supostamente “selvagens”, “primitivas”.
Cada etnia tem seus costumes, cultura e peculiaridades, então é preciso distinguir de qual povo indígena nos referimos: Guaranis, Aikanã, Bororo, Canela Apanyekrá, Wajãpi, Xinane, Tupari…
Acreditar que uma comunidade só é indígena “de verdade” se usar as vestimentas da época da colonização, longe da tecnologia e sem conhecimento da língua portuguesa é reproduzir o conceito de pureza, em que apenas costumes tradicionais e sem nenhuma influência externa é considerado o “verdadeiro”. Será mesmo que uma nação precisaria ficar longe de qualquer influência para continuar existindo de forma pura? Uma cultura iria se sobrepor à outra?
Nessa crença fica subentendido que a cultura dominada não é forte e as pessoas que nela vivem não têm voz, o que não é verdade. Também se subentende que a cultura é estática e alterações sofridas seriam a perdas. Não, não é assim. A cultura é mutável e o contato entre nações resulta em trocas, perdas, ganhos e adaptações. Supondo que um povo esteja completamente isolado e sem a mínima troca com outras culturas, mesmo assim a cultura desse povo se modificará conforme o tempo, os indivíduos e suas vivências trarão novos olhares que podem ou não alterar a cultura, podem somar ou excluir aspectos dessa comunidade. Observe que não me refiro à doutrinação, catequização ou dominação.
No Brasil o contato de comunidades indígenas com outras comunidades poderia ser natural e parte do processo cultural de ambos os povos, mas dentro do contexto exploratório geosociopolítico em que a população indígena está inserida, o descaso e a desvalorização resulta em inúmeros problemas para a saúde física e mental desses povos.
O alto preço de alimentos naturais por causa das mudanças climáticas e sazonais, a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos, o desmatamento, o aumento da utilização de agrotóxicos se soma ao salário irrisório que recebem (meninas indígenas de 15 anos são chamadas para trabalhar em casa de família, por exemplo), resultam em aumentou de consumo de alimentos processados e ultraprocessados.
No site Brasil de Fato, a jornalista Martha Raquel entrevistou Jefferson Ferreira, indígena da etnia Macuxi e presidente da Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima. Ferreira explica que há décadas o comércio de alimentos faz parte das comunidades nativas, a diferença é que como antes havia o cultivo de alimentos, a procura nos mercados era apenas por alguns ingredientes, como sal e açúcar.
A mudança para um padrão alimentar pobre em nutrientes, as violências e preconceitos a que são submetidos desencadeou doenças físicas e mentais aos povos indígenas, principalmente aos que migram para cidades não indígenas que ficam constrangidos em manter alguns costumes por causa dos “bullyings” sofridos.
Renan Albuquerque Rodrigues em seu livro “Sofrimento Mental de Indígenas na Amazônia” ponderou que nas nações Sateré-Mawé e Hixkaryana da região fronteiriça Amazonas-Pará foi observado que entre os transtornos mentais detectados estava o transtorno alimentar (TA).
O tratamento violento não é destinado apenas às nações indígenas brasileiras. O jornal australiano “The Sydney Morning Herald” ao entrar em contato com uma instituição de caridade para TA, a “Butterfly Foundation” forneceu dados de que 10 em cada indígenas do país experimentará em algum momento da sua vida um TA e que 30% desses jovens já estão preocupados com a imagem corporal. Preocupados com os alarmantes números, criaram a campanha “EveryBODY is Deadly” afim de aumentar a conscientização entre as comunidades aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres.
Na mesma reportagem entrevistaram Garra Mundine, 29 anos uma mulher de Wiradjuri, Bundjulung, Kamilaroi e Yuin. Ela nasceu em Dubbo, mas mudou-se para Sydney quando tinha 11 anos. Mundine contou que ao procurar ajuda foi atendida por um médico não indígena extremamente desdenhoso e ríspido, o que a deixou sem coragem de continuar sua busca por tratamento. Ela não sabia o que tinha, nem quais sintomas eram aqueles, já que os filmes e matérias que pesquisava sobre TA apresentava só mulheres não indígenas, especialmente meninas brancas.
Doenças multifatoriais como transtornos alimentares necessitam de investimento em pesquisa para que, tanto profissionais da saúde quanto a população leiga, possam procurar ajuda.
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Renata Rennó
Antropóloga, aprimorada em transtornos alimentares pelo AMBULIM-IPq-HC-FM-USP. Formada em Relações Públicas pela FAAP. Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Sergipe e Pós Graduada em teorias e técnicas para Cuidados Integrativos pela UNIFESP. Membro do conselho técnico da ASTRALBR. Instagram: @renatarenno_.
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