Às vezes tenho uma sensação esquisita ao acordar, geralmente após uma noite de sono longa e mal dormida. É quase como se minha mente tivesse acordado, mas meu corpo seguisse dormindo. Eu vou ao banheiro, lavo o rosto e escovo os dentes em um estado meio sonâmbulo, acompanhada por um leve medo de perder o controle de mim mesma e apagar a qualquer momento, como um carro com o motor pifando. Daí, por algum motivo, este estado vira um gatilho para lembrar dos meus piores episódios com transtornos alimentares, especialmente relacionados à anorexia, e algumas coisas se costuram. Afinal, anorexia é mais ou menos isso: essa sensação de sonambulismo, não-pertencimento e um estranhamento constante. Uma questão muito mal compreendida sobre este transtorno alimentar é que vai muito além de emagrecimento ou de uma tentativa de se encaixar em padrões sociais de beleza malucos. Quer dizer, é tudo isso também, mas não é só isso. Do meu ponto de vista, de quem já vivenciou e ainda sofre com rastros corporais e emocionais desta bizarra doença, penso que anorexia fala sobre, principalmente, disforia corporal: o teu corpo, de repente, não te pertence mais, então você entra num jogo perigoso, e muitas vezes fatal, que mascara uma tentativa de se anular, se machucar, sumir. Um jogo que, importante ressaltar, não leva a lugar nenhum. É basicamente um redemoinho auto-destrutivo. Entrar até que é fácil, às vezes a gente nem sente. O problema é sair. O tratamento, quando acontece, é cruel e acompanhado por muitas dores, uma melancolia esmagadora, raiva e várias frustrações -principalmente, por ser forçada a abandonar algo que você, infelizmente, desejou (e se esforçou) muito para alcançar. Entender que as suas metas eram totalmente equivocadas e que você é, na verdade, um grande perigo para você mesma é muito (mas muito!) difícil. Além disso, justificar um controle abusivo das pessoas (falo de família, principalmente) sobre o seu corpo, ameaçando a sua própria independência e zerando qualquer possibilidade de privacidade não vale a pena. Mesmo, não vale a pena. Mas até você se dar conta de que não vale a pena, é um loooongo caminho. É bem cansativo, também. Aliás, acho que o que me venceu, mesmo, foi o cansaço. Rompi todos os meus limites e me esgotei, em todos os sentidos. Em algum momento, que não consigo lembrar exatamente qual foi, eu só cansei. Parei. Fui deixando de mentir, para os outros e para mim mesma, não porque fui “iluminada” pela razão e auto-percepção, mas porque cansei. Mesmo. Comecei, então, a ganhar peso, comendo o que me diziam que eu deveria comer, fazendo mais refeições compartilhadas, deixando de me pesar sozinha e diminuindo o tempo que eu passava em frente ao espelho. Mas tudo aos poucos, bem aos poucos. E assim meu corpo foi, lentamente, voltando a me pertencer. Eu escrevi tudo isso, na verdade, com a finalidade de dizer, para quem couber, que é possível melhorar. Mesmo, gente: é possível ficar bem e, principalmente, vale a pena ficar bem. Por mais difícil que este caminho possa parecer, e muitas vezes é. Acho que o mais importante é não desistir. E seguir, tentando se perceber e se pertencer, a cada dia um pouquinho mais. Com paciência, carinho e muito auto-cuidado.
Formada em teatro com o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz (2014-2016), formada em dança com o Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre (2017) e atual graduanda em História da Arte na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018/01). Nasceu e reside em Porto Alegre/RS.