O Tratamento Multidisciplinar e a Terapia Psicanalítica
Os Transtornos Alimentares (TA) configuram-se hoje como objetos de estudo com amplo espectro em pesquisas científicas e sabe-se que há um caráter multifatorial em sua etiologia. São eles constitucionais, sociais, culturais, familiares e de personalidade.
Por seu caráter multideterminado, configura-se como necessária uma terapêutica multidisciplinar para lidar com eles e a psicoterapia psicanalítica é uma das terapias psicológicas disponíveis.
A psicanálise dos TA é, atualmente, amplamente estudada, com fonte de pesquisas e de eficácia comprovada. Tentarei aqui abordar algumas especificidades da psicoterapia psicanalítica e sua relevância como modo de tratamento dessas pacientes. Para tanto, vamos refletir sobre alguns pontos importantes.
Pacientes com Transtornos Alimentares apresentam resistências quanto a procura por atendimento psicológico? Como viabilizar essa demanda?
Sabe-se que pacientes com TA negam veementemente o caráter patológico da sua condição e, por isso apresentam fortes resistências ao tratamento e têm dificuldades de aderir a eles.
Um dos pontos que justifica essa resistência, é a noção de cura. A cura para a psicanálise não é simplesmente a eliminação de um sintoma. A direção do tratamento psicanalítico, ainda que centrada no sintoma (como às crises bulímicas ou a recusa alimentar na anorexia), tem como objetivo ir além do seu desaparecimento e visa a elaboração do conflito subjacente a ele. Esses podem ter vários significados e motivações como dificuldades nos processos de individuação da adolescência, ou mesmo a sensibilidade às mudanças socioculturais.
O sintoma nessa perspectiva, pode ser visto de maneira positiva, pois mostra um movimento do Eu que busca se desvencilhar de um sofrimento insuportável, mas o faz de maneira equivocada. A terapia psicanalítica visa auxiliar o paciente a lidar com esse sofrimento de outro modo mais “saudável”. O analista serve-se do sintoma como via indireta, a fim de trabalhar e dissipar uma dor inconsciente.
A cura não é a meta de uma psicoterapia psicanalítica, mas é uma consequência.Pacientes com TA apresentam uma falta de esperança de que haja outro capaz de auxiliá-los ou até uma impossibilidade de ver como questão o que se passa internamente com eles mesmos. Então, para investirem no tratamento, é importante que se vinculem ao analista e acreditem no bom prognóstico do tratamento.
Para que a análise tenha êxito o paciente tem que estar presente. Tomar em análise alguém que é incapaz de reconhecer seu sofrimento pode inviabilizar o trabalho clínico.
Uma das primeiras dificuldades que encontramos em pacientes que apresentam problemas alimentares é a chegada aos consultórios, talvez porque não ocorra a abertura para a dúvida e por não colocarem em questão seus atos.
A prática terapêutica nos remete à mobilização do paciente por intermédio da associação livre, mas não devemos esperar que exista associação livre para que se inicie o processo clínico. Ela é uma meta do trabalho e não ponto de partida.
A terapia psicanalítica acredita que, por meio da fala, o paciente pode expressar-se livremente fazendo surgir o conflito inconsciente. Para além das atuações, dos incômodos que aparecem pela recusa alimentar ou pelos excessos, é possível utilizar a fala como veículo terapêutico. Isso significa dar nome a esses incômodos e conflitos vividos, para que não sejam lançados exclusivamente no corpo e na alimentação.
A psicanálise vai trabalhar, portanto, no campo simbólico da alimentação, nas emoções (medos, autoestima), sentimentos despertados, nas relações com os familiares, em como lidar com o corpo, na noção de fome e de saciedade no campo simbólico. O paciente tem fome do que? O que sacia sua vida?
Sabendo que as problemáticas alimentares ilustram embates nas relações pessoais, o trabalho analítico também promove à possibilidade de que os pacientes com Transtornos Alimentares se apresentem no vínculo com o terapeuta. Seus conflitos são expressos nesta relação, possibilitando elaborações: alguns com repúdio podem expressar sua dificuldade em resolver problemáticas narcísicas, de diferenciação e formação da identidade, que remontam às falhas nas fases precoces de seu desenvolvimento infantil.
Também se observa outros que são mais susceptíveis ao que lhes é demandado, e neste aspecto o analista pode cuidar do manejo com suas interpretações, para que o processo de elaboração dos conflitos ocorra pela descoberta do próprio paciente, que ativamente vai reconhecendo seus pensamentos e emoções.
Outro manejo importante diz respeito ao uso do divã, que pode se apresentar mais como elemento persecutório do que como possibilidade de livre associar. Pacientes com TA não se beneficiam do uso dele, sendo a posição face a face mais recomendada pois são vistos pelo analista, utilizando-o como espelho até restabelecer sua capacidade simbólica.
O terapeuta pode fazer uso de recursos lúdicos quando necessário, buscando amplificar as formas de comunicação com esses pacientes. O tempo das consultas pode ser adaptado, para dosar o quanto o paciente suporta no contato com o terapeuta, mas sempre com a escuta atenta do analista, que abre novas possibilidades de ser.
Pode-se oferecer ao paciente uma quantidade suficiente de sessões semanais, pois muitos não suportam um contato tão frequente com o analista. Para que não se sintam pressionados à proximidade, pode-se avaliar a quantidade semanal de sessões que favoreça um bom prognóstico do caso.
O próprio terapeuta, com seu diálogo contínuo com a equipe multidisciplinar envolvida no atendimento do caso, poderá partilhar os desafios do tratamento, favorecendo a evolução e manejos frequentes que demandam.
Carla Puglisi Cardoso
Formada em Psicologia pela PUC-SP e psicanalista pelo Sedes Sapientae. Membro efetivo da Ceppan – Centro de Estudos e Pesquisa em Anorexia e Bulimia. Psicoterapeuta do PROTAD- HC de 2007 a 2010 (Programa Interdisciplinar de Atendimento, Ensino e Pesquisa dos Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência).
Referências: