No ano de 2008, quando realizei minha pesquisa de Mestrado intitulada “O imaginário da perfeição: a corporeidade em homens com transtornos alimentares”, uma das perguntas que mais escutei, normalmente pronunciada em tom que expressava espanto, foi: – “Homens também podem ser acometidos por anorexia ou bulimia nervosas?!”
Ao mesmo tempo que achava tal questionamento valoroso no sentido de propiciar reflexão, esclarecimentos e possível ampliação de consciência em direção a romper com o estereótipo de que os transtornos alimentares (TAs) afetam apenas o universo feminino, também o considerava preocupante.
Desconhecimento pode turvar o olhar das pessoas – uma quase cegueira na qual pré-conceitos podem se instalar, como acontece no mais das vezes – e servir de obstáculo para que homens se expressem, de maneira confortável, sobre seus sentimentos e fantasias, medos e inseguranças a respeito de seus corpos, ou seja, sobre a forma como se veem e lidam consigo mesmos. Este olhar estigmatizante, como sugerem algumas pesquisas, aumenta o sofrimento, o isolamento e a resistência daqueles que estão a precisar ou buscar ajuda.
O transtorno alimentar no homem se manifesta de diversas maneiras, pode tratar-se de um chamado quadro “clássico” ou de algo mais “específico” – não há um só padrão identificável. Vale mencionar: dos três adolescentes que fizeram parte de minha pesquisa (um estudo de caso, com abordagem qualitativa), dois adolescentes apresentaram anorexia nervosa do tipo compulsão periódica/purgativo e o terceiro, anorexia nervosa/síndrome parcial: TAs sem outra especificação, de acordo com o DSMIV-TR.
Estudos indicam que, muitas vezes, tais transtornos vêm acompanhados ou acompanham comorbidades psiquiátricas, tais como: uso de álcool e outras drogas; depressão; ansiedade; transtorno obsessivo compulsivo e transtornos de humor. Traços de personalidade como baixa autoestima ou perfeccionismo e idade da primeira crise mais tardia também são característicos (Sangha; Oliffe; Kelly; McCuaig, 2019).
Complementarmente, alguns fatores de risco foram identificados nas pesquisas, dentre os quais, assinalam-se: (i) insatisfação com o corpo (discrepância entre a imagem do corpo real e a ideal); (ii) dismorfia muscular (comum em homens que almejam corpos musculosos com pouca gordura corporal, em sua busca pelo “corpo perfeito”); (iii) obesidade na infância e bullying; (iv) participação em esportes de alta performance (a demandar acelerado ganho ou perda peso e baixo percentual de gordura corporal para atingir a melhor performance) e (v) influências socio culturais. Não se pode esquecer que a mídia e a cultura valorizam figuras masculinas magras e atléticas o que pode despertar sentimentos de vergonha do próprio corpo naqueles que não têm tal biotipo (Sangha; Oliffe; Kelly; McCuaig, 2019).
Outra variável, fator de risco, destacada nos estudos dos homens que apresentam transtorno alimentar diz respeito à orientação sexual destes. Algumas pesquisas recentes apontaram haver uma maior incidência de transtornos alimentares, questões de imagem corporal, comer compulsivo, prática de vomitar, dieta restritiva, uso de remédios para emagrecer e mal uso de anabolizantes em indivíduos do sexo masculino não heterossexuais. Pessoas LGBTQIA+ tendem a ser mais exigentes com a sua imagem corporal, a sofrer mais bullying e a serem discriminadas em seu dia a dia, vivências que podem levar ao desenvolvimento do TA. Outros estudos, porém, demonstraram que, com relação ao desejo de ganhar peso ou músculos, não existe diferença perceptível a depender da orientação sexual do estudado – e, se é que tal distinção existe, heterossexuais apresentariam mais riscos de desenvolver um TAs orientados pelo desejo de ficar forte. (Murray et al, 2017).
Pois bem, apesar de pesquisas recentes (Gorrell; Murray, 2019) e dados do Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) (The Guardian, 2019) sugerirem um crescimento no número de casos de homens com transtornos alimentares, bem como na procura por atendimento especializado, transcorrida mais de uma década desde minha dissertação de Mestrado, ainda me surpreendo com o escasso número de pesquisas feitas com homens – meninos, adolescentes e adultos – em comparação às mulheres, menos de 1%! (Gorrell; Murray, 2019), o que aponta para uma necessidade!
Necessidade, pois, a falta de conhecimento também afetou os profissionais de saúde que, por pouco conhecimento, em muitos casos, não identificaram os possíveis diagnósticos e os tratamentos indicados, aumentando o risco de complicações nas pessoas acometidas pelos TAs. Em suma, os TAs em homens continuam pouco compreendidos (Manochio-Pina; Fernandes; Pilot Pessa, 2018).
Portanto, em se tratando do diagnóstico que apresenta maior complexidade e diferenças clínicas fundamentais quando comparados com o das mulheres, mostra-se necessário que equipes de profissionais de saúde estejam preparadas para identificar um diagnóstico e, mediante uma intervenção cuidadosa, encaminhar para tratamento apropriado, os homens acometidos por TAs.
Ademais, pensando em um trabalho preventivo e de conscientização, o papel dos profissionais de saúde, de professores e educadores e, ainda, da mídia e redes sociais é fundamental para informar a sociedade e encorajar adolescentes, jovens e adultos a conversarem sobre suas preocupações com o corpo e imagem corporal. Estudos destacam a importância em lhes assegurar que tais questões são comuns em ambos os sexos, já que os homens tendem a não falar abertamente, como as mulheres, sobre conflitos emocionais e buscar tratamento.
Felizmente, é possível observar uma recente mudança: cada vez mais eles estão falando sobre suas histórias relativas à corporeidade, a alimentação, a prática de exercícios físicos e adesão a dietas radicais o que, como mencionado acima, colabora com uma maior conscientização, direta ou indiretamente.
Surgem os seguintes questionamentos: estaria o número de casos realmente aumentando ou foi a percepção dos profissionais de saúde de que homens também sofrem de TAs que ampliou, aumentando o número de indivíduos diagnosticados? Ou ainda, estariam os homens mais encorajados a buscarem tratamento? Essas duas últimas, suponho, seriam consequências de conscientização.
Apesar das diferenças de matiz sintomatológico percebidas entre os homens e as mulheres (além das influências biológicas, psicológicas e sociais), o desenvolvimento dos transtornos alimentares e/ou questões ligadas a imagem corporal podem ser vivenciados por qualquer pessoa – independentemente do sexo, da identificação de gênero ou orientação sexual.
Certamente, os transtornos alimentares transcendem as questões de gênero; são expressões no corpo de sofrimento psíquico, vestígios de vivências traumáticas não elaboradas e muitas vezes ainda não-pensadas – o que me faz recordar do seguinte trecho de Clarice Lispector (1998), de seu livro “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”: “Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado no espelho e se surpreendido consigo próprio”.
Psicóloga, atua em consultório particular. Mestre em Ciências pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da USP de São Paulo. Membro Filiado ao Instituto “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP-IPA. Parceira da CEPPAN (Clínica Cybelle Weinberg de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia).
Referências: