“Quando crescer passa”. “Frescura”. “Nem se preocupe”. Quantas famílias ouviram e, infelizmente, ainda ouvem frases como essas, de especialistas, amigos, família, escolas – quando contam e buscam ajuda sobre a dificuldade alimentar de seus filhos?
No último manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-V), de 2013, foi incluído o Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (TARE), um passo importante para que essa “frescura” que de frescura nada tem, fosse reconhecida e passasse a ser levada mais a sério; pois só assim, cada vez mais se pesquisa e se propõe tratamentos que possam, de fato, aliviar o sofrimento e melhorar a relação com a comida das pessoas que tem o diagnóstico de TARE.
O TARE é mais comum em crianças, mas muitos adultos também apresentam os sintomas que vão de desinteresse pela comida, medo ou preocupação com as possíveis consequências desagradáveis de comer determinados alimentos, e evitação de alimentos por suas características sensoriais (cor, textura, odor e sabor de determinados alimentos).
O grande problema é que geralmente quem tem TARE pode ter um consumo alimentar insuficiente ou inadequado em quantidade e qualidade que pode levar à consequências importantes na saúde – a pessoa pode ter por exemplo um peso muito baixo, mas também poderá ser obesa e, não só questões com o peso mas também fraqueza, ausência de menstruação, alterações de sono, constipação, fadiga, alterações de humor etc, assim como sofrimento e consequências psicossociais que podem ser muito limitantes à vida.
Crianças e adolescentes com dificuldades alimentares não tratadas podem se tornar adultos com TARE. As dietas muito restritas (em calorias e grupos alimentares específicos) também podem ser um gatilho para um TARE se iniciar na vida adulta. O adulto com TARE pode sofrer sozinho com seus problemas alimentares e, muitas vezes, aprende a “se virar” para conseguir se inserir na sociedade, o que não significa que esteja livre de sofrimento e dificuldades.
Cabe dizer que no TARE não há uma insatisfação com a imagem corporal e nem uma outra doença mental ou orgânica que interfira na alimentação. Não se sabe exatamente o que faz com que uma pessoa desenvolva uma relação problemática e disfuncional com a comida. Mas, considerando que a alimentação deve ser vista sob uma perspectiva biopsicossocial, ou seja, considerando os aspectos sociais, biológicos, culturais e emocionais, é essencial que o tratamento também contemple todos esses aspectos.
Adultos com TARE costumam consumir uma lista de alimentos muito restrita e seletiva de alimentos (às vezes menos de 20). Podem se recusar a experimentar novos alimentos ou referir dificuldades sensoriais e com texturas. Também há uma ansiedade e enorme dificuldade ao experimentar um novo alimento – algo “desconhecido”. Geralmente só consome o que acha “seguro”, mas o que cada pessoa acha seguro é muito particular e específico, geralmente “não faz sentido” para a maioria das pessoas que não tem nenhum problema alimentar.
Ainda não existe um tratamento baseado em evidências para adultos com TARE, pois, a grande parte das pesquisas foca em crianças. Os relatos de caso de adultos com TARE identificam o quanto os sintomas são graves e limitantes e alguns relacionam o tratamento com terapia cognitiva comportamental (TCC) com melhora de peso, sintomas alimentares e a incorporação de novos alimentos. O tratamento deve ser muito individualizado e focar especificamente nas dificuldades de cada pessoa, que pode apresentar um comer seletivo ou restritivo ou fobia alimentar, ou essas três limitações podem ocorrer ao mesmo tempo: uma pessoa que engasgou com um bife por exemplo, pode eliminar as carnes e começar a comer muito pouco de apenas um tipo de textura de alimentos (purês) para se prevenir de um possível novo engasgo.
Os objetivos do tratamento precisam ser claramente definidos e compartilhados com o paciente e deve ser feito por etapas, considerando a urgência ou não de ganho de peso. Alguns estágios são: psicoeducativo sobre o TARE – contar ao paciente o que ele tem e como se trata, estabelecer uma rotina alimentar com refeições estruturadas e regulares, início de aumento de volume e variedade, priorizando o aumento de volume com alimentos já consumidos, terapia de exposição – forma de diminuir ansiedade com alguns alimentos criando mecanismos e ferramentas para lidar com as dificuldades, aumentar e equilibrar o consumo de alimentos de todos os grupos alimentares, criar estratégias para lidar com situações sociais e fora do ambiente seguro e trabalhar a prevenção de recaídas.
O tratamento precisa ser entendido como um processo, que irá evoluir a partir da realidade de cada um. Que pode ter avanços e retrocessos. Que pode ser demorado. Mas que cada conquista deve ser comemorada e trabalhada para que seja mantida. É importante que os desafios feitos possam ser sustentados e “bancados”, mas com cuidado para não sobrecarregar e ir além do limite, o que pode gerar um retrocesso.
Adultos que sofrem silenciosamente com as limitações de sua dificuldade alimentar e querem mudar e aumentar seu repertório alimentar, aprender a tolerar o simples cheiro de um alimento considerado aversivo ou conseguir enfrentar o medo de comer determinados alimentos, precisam saber que há tratamento e que é possível melhorar, sempre com ajuda de profissionais especialistas.
Manoela Figueiredo
Jornalista e nutricionista. Aprimorada em transtornos alimentares pelo Ipq-HC-FMUSP. Certificada em Intuitive Eating e Qualificada em Mindfulness Based Eating Awareness Training (MB-EAT) Instructor e nível 1 de treinamento em Mindful Eating-Conscious Living (ME-CL1). É coordenadora do Grupo Especializado em Nutrição, Transtornos Alimentares e Obesidade (GENTA). Idealizadora do Instituto Nutrição Comportamental. Autora dos livros “Comer com Atenção Plena” e “Nutrição Comportamental”, e, colaboradora do livro “TARE – Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo: Para pais e cuidadores”. Instagram: @manufig.
Referências: