Antes de compartilhar a dificuldade alimentar do meu filho, no meu livro TARE – para pais e cuidadores, pensei muito se eu teria esse direito – o direito de decidir por ele, que neste momento ainda é uma criança.
Principalmente, em uma sociedade na qual ainda há um enorme estigma e um julgamento excessivo quando falamos sobre algo que não é muito compreendido. Uma sociedade em que há pessoas que crucificam mães, pais e cuidadores, sem piedade nem compaixão, sem medir palavras, nem olhares. Mas é exatamente para quebrar esse tabu e preconceito pelo desconhecido que precisamos falar mais sobre isso.
Eu só ouvi sobre o Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (TARE), no final de 2018, quando o meu filho Theo, que estava com 7 anos, recebeu esse diagnóstico nos EUA, onde moro desde 2015.
Infelizmente, ainda nos dias de hoje, encontramos poucas informações e poucos profissionais preparados e capacitados para lidar com esse diagnóstico. Embora o meu filho apresentasse a dificuldade alimentar desde a introdução alimentar, percorri um longo caminho até́ encontrar um médico que soubesse o que é o TARE.
Nesse processo de busca por ajuda, escutei poucas e boas, ou melhor, “muitas e más”. Cheguei a ouvir de pediatras conceituados que eu não era um bom modelo de mãe para o meu filho e que ele precisava passar fome para valorizar o que tinha à mesa. Alguns médicos sugeriram que ele era mimado, mal-educado, e que ele queria chamar a minha atenção. Ouvi de outras pessoas que, se ele tivesse nascido na África, comeria o que tivesse no prato. Ouvi também que, se ele fosse pobre, não teria “frescura”. Uma “amiga” insinuou que ele vivia de dieta, como se eu impusesse isso a ele, proibindo-lhe de comer algumas coisas.
Por tudo isso e muito mais, eu resolvi expor a nossa história para poder ajudar outras famílias que também passam por isso. Se eu tivesse lido um livro como o meu há alguns anos, com certeza a nossa caminhada teria sido mais leve.
O meu filho tem os três subtipos de TARE: o comer seletivo, o comer restritivo e a recusa alimentar por medo de consequências aversivas.
O que muitos não sabem é que o TARE pode estar muito ligado ao Transtorno do Processamento Sensorial (TPS), que é uma dificuldade em processar os estímulos do ambiente e os sentidos (olfato, paladar, tato, visão, audição, vestibular e proprioceptivo). Muitas pessoas, inclusive os profissionais, ainda associam o TPS apenas ao Transtorno do Espectro Autista (TEA). Mas o TPS pode ocorrer de forma isolada e a dificuldade alimentar pode estar muito associada às questões da sensibilidade sensorial. Como o meu filho não é autista, os médicos demoraram anos para entender que as dificuldades alimentares tinham essa conexão. Enquanto ele não foi tratado de uma forma integrada, com terapia ocupacional para trabalhar os sentidos através da integração sensorial, ele não teve uma melhora significativa. A criança precisa ser avaliada em um todo. Muitas vezes, a dificuldade alimentar pode ser apenasa ponta de um iceberg, como uma consequência de algum desconforto que acriança está sentindo. O “não comer adequado” pode ser uma resposta a algum problema maior, que muitas vezes não está visível e precisa ser investigado com mais atenção.
Quando eu entendi tudo isso, percebi que simplesmente todas as dificuldades que o Theo tinha enquanto criança, não só́ na alimentação, tinham a mesma raiz. O que muitas vezes eu considerei que ele não fazia por preguiça, na verdade, ele não fazia por dificuldade sensorial. Eu nunca tinha me dado conta de que as escolhas do meu filho por atividades mais sedentárias e que o fato de ele não gostar de sair de casa, de não gostar de andar de bicicleta, de não conseguir balançar no balanço ou de se pendurar naquelas barras de parquinho, a dificuldade na natação, o fato de ele não conseguir amarrar o tênis, e o quanto ele demorou para conseguir tomar banho sozinho, para conseguir apertar o recipiente para tirar o shampoo sozinho, se trocar sozinho, comer sozinho, o quanto de “ai” que ele falava para secar o cabelo, para pentear o cabelo, para passar protetor solar, quantas roupas e sapatos o incomodavam, a dificuldade que ele teve para escrever, recortar e usar as mãos para atividades manuais, como ele não conseguia ter forças para abrir as garrafinhas de água, a geladeira, entre tantas outras coisas, estavam associados a uma dificuldade sensorial.
Quem tem o Transtorno do Processamento Sensorial pode ter a hipersensibilidade, uma maior sensibilidade aos estímulos (sentir a mais) e essa mesma criança/adulto pode apresentar também a hipossensibilidade, maior dificuldade em processar os estímulos (sentir a menos), para outras coisas. No caso do Theo, ele tinha essa hipersensibilidade no paladar, olfato, tato, audição e visão. Já no caso da fome, ele tinha a hipossensibilidade. Ele nunca dizia estar com fome.
A abordagem de tratamento que realmente surtiu efeito para o meu filho foi a que incluiu a integração sensorial, conduzida através de brincadeiras e de forma lúdica, desenvolvendo as habilidades que ele precisava para comer e usar o seu corpo com mais conforto e segurança.
E é muito interessante porque nesse tratamento, não se usa a palavra “tratamento”. A criança vai para uma foodschool. É diferente de uma escola de culinária. Ele não ia lá́ para aprender a cozinhar, muito embora algumas atividades fossem feitas cozinhando. Mas ele estava indo para uma escola de comida para superar as dificuldades no ato de comer. Uma escola para aprender a comer melhor.
Também não se usa a palavra “transtorno”. Utiliza-se o termo “dificuldade”. Então da mesma forma que uma criança que tem dificuldade em matemática, por exemplo, vai para uma classe especial para aprender mais, para ter um reforço, uma ajuda, uma criança com dificuldade para comer vai para uma “escola” para também receber ajuda e aprender a comer melhor.
Esses detalhes fizeram muita diferença na vida do meu filho. Ele deixou de se ver com um “defeito”. Ficou mais claro para ele entender, usando esses exemplos de que todos nós, como seres humanos, temos as nossas dificuldades, e tudo bem. Ninguém é menos por isso. Temos habilidades em algumas áreas, temos dificuldades em outras, e essas diferenças fazem parte da vida. Dificuldade é bem diferente de incapacidade.
Ele começou a entender o que acontecia com ele e o porquê de ele ser “diferente” dos seus amigos em algumas questões. E à medida em que ele foi se sentindo mais confortável no seu próprio corpo e as suas habilidades foram melhorando, ele passou a gostar de fazer coisas das quais ele achava que não gostava. E com tudo isso “junto e misturado”, ele começou a comer melhor. Ele perdeu o medo de experimentar novas comidas, e ele passou a ficar mais seguro de si. Ele começou a rir mais e a se cobrar menos. Ele começou a se divertir mais, inclusive com a comida.
A vida ficou menos tensa. A casa ficou mais leve, com as refeições em harmonia.
Memórias em volta da mesa começaram a ser criadas.
Ele passou a ter mais disposição para brincar, para sair de casa e para simplesmente ser criança.
Graduada em Turismo, pela PUC-Campinas, e em Fotografia, pelo The New York Institute of Photography. Autora dos livros: “Eu, ele e a enfermeira… Na luta contra a anorexia”; “Dos desencontros ao encontro”; “Tesselas – A família mosaico”; “De: filha Para: pai”; “Crônicas de Frenelda – Aventuras na terra do Tio Sam”, “Liberte-se: você nasceu para ser real, não perfeita” e “TARE – para pais e cuidadores”. Em 2020, a sua primeira obra foi traduzida para o inglês, com o título “Together… Our fight against anorexia”, e neste mesmo ano recebeu o prêmio Reconhecimento Internacional de Literatura Brasileira, da Academia Internacional de Literatura Brasileira. Atualmente cursa faculdade de Psicologia na Purdue University. [Instagram]
REFERÊNCIAS:
APA – AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5): 5th ed. Washington, DC, USA: American Psychiatric Publishing; 2013.
AYRES, AJ. What’s Sensory Integration? An Introduction to the Concept. In: Sensory Integration and the Child: 25th Anniversary Edition. Los Angeles: Western Psychological Services, 2005.