Alguém de identidade frágil e moralmente inferior. Essa parece ser a tradução dos olhares sobre corpos gordos. Corpos que precisam ser mudados para poder existir, criou-se a ideia de que na academia as pessoas não desenvolvem só os músculos como também seu caráter.
Pessoas gordas que emagrecem são chamadas de vitoriosas, independentemente da sua situação emocional. Filmes ainda apresentam os gordos como pessoas que não merecem atenção ou respeito e que são bobas e engraçadas. Graças aos movimentos anti-gordofóbicos esses estereótipos têm tido menos espaço para se propagar.
A militância gorda trava uma luta contra o discurso biomédico gordofóbico fantasiado de saúde.Nosso caráter e nossa saúde podem ser analisados a partir da superfície, por nossa pele, pela orientação sexual e tamanho de corpo.
Estar magro, “malhado”é uma forma de estar em uma posição privilegiada. A população tem acesso aos alimentos ultraprocessados, pobres em nutrientes e que não sustentam. Quantas vezes já vi motoboys de empresas de entrega de comida comendo bolachas recheadas enquanto trazem nossos almoços?
Em um país de terceiro mundo, divulgar que nossa alimentação básica é a mais saudável talvez não seja tão lucrativo quanto anunciar que dieta saudável depende de produtos específicos e caros.Com o surgimento do nutricionismo (informações nutricionais reducionistas e simplistas), alimentos geralmente de difícil acesso são elevados à salvadores da saúde.
Fazer exercícios a ponto de manter corpo desejado e não apenas por saúde é também uma forma de estar entre os desejados. Estar no topo é para poucos e por isso é uma posição validada.
Quanto mais elitizada e inalcançável forem os modelos a serem seguidos, mais força a economia tem, afinal, a busca pelo padrão é interminável pois “sempre dá pra melhorar” e assim gastamos continuamente em produtos e tratamentos estéticos afim de afastar quaisquer dobras e rugas que um ser humano invariavelmente terá.
Isso não é novidade na nossa história, os padrões de cada época são criados para gerar insatisfação na população e fazer investir tempo, energia e dinheiro. Manter o distanciamento da “elite” e povo é algo politicamente atrativo.
Vivemos há algum tempo em que o padrão estético é a referência mas podemos pensar também na “cultura erudita e elite intelectual”, em que poucos detém a sapiência da “nobre cultura”, seja lá o que isso possa significar. Um pequeno grupo de pessoas com maior poder aquisitivo que mantinham e mantém o bom gosto e o saber. Quem determina o que é arte invariavelmente faz parte da elite. Para ficar ainda mais inalcançável, utilizam expressões e discursos de difícil compreensão.
Músicas populares quando surgem são sempre menosprezadas pela elite que as consideram vulgar. Com o passar do tempo e apropriação dessa cultura popular, as músicas são impulsionadas à categoria “música de qualidade”, como aconteceu com o samba, mpb, rock, forró…
Entendida a estratégia política em que os padrões de beleza e cultura são içados, talvez fique um pouco mais claro o porquê da discriminação. Não, não é porque o corpo gordo é portador de doenças, vários estudos já mostraram que há pessoas gordas com resultados de exames normais e pessoas magras com exames alterados (até porque, se a pessoa gorda realmente portar alguma doença certamente não será através de “conselhos” e discriminação que ela melhorará). É que nosso sistema precisa de uma maioria excluídas para continuar a girar.
Os movimentos “Positividade Corporal” (Body Positive) e “Neutralidade Corporal” (Body Neurality) têm grande importância no combate à gordofobia. Lutam por um novo olhar sobre nós mesmos para que pessoas gordas não sejam constrangidas por serem quem são. Reconheço e aplaudo os movimentos. O que penso é que o foco não pode ser no corpo.
A “Positividade Corporal” pode ser um caminho para aceitação, mas acredito que o corpo não pode ter tanta relevância pois certamente será monetizado e serão criados novos padrões, e, assim, manter a maioria excluída. Se não ficarmos tanto na superfície, ter a pele, o corpo como tradução de nossas habilidades emocionais, podemos investir em características que não têm “data de validade”, ao contrário, características que podem ser aprimoradas pelo tempo.
Gosto muito da expressão “corpo acessório” cunhada pelo antropólogo francês Le Breton, em referência à modulação corporal que fazemos pois o corpo se tornou objeto a ser constantemente melhorado. Investir em autoconhecimento sempre traz segurança com raízes fortes, não é como o investimento na estética que qualquer comparação nos faz balançar.
Renata Rennó
Antropóloga aprimoranda em transtornos alimentares pelo AMBULIM. Formada em Relações Públicas pela FAAP. Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Sergipe e Pós Graduada em teorias e técnicas para Cuidados Integrativos pela UNIFESP. Membro do conselho técnico da ASTRALBR. Instagram: @renatarenno_.
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