A Cultura da Dieta e a opressão às mulheres

Na década de 1970, o dia 8 de março foi oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional da Mulher, trazendo atenção à luta das mulheres por direitos humanos fundamentais e a desigualdade de gênero¹. Se prestarmos atenção na linha do tempo das conquistas femininas, é difícil não nos espantarmos com o fato de que muitas dessas conquistas são extremamente recentes. 

No Brasil, foi somente em 1932 que as mulheres passaram a ter direito ao voto. Apenas em 1974, foi aprovada a Lei de Igualdade de Oportunidade de Crédito (anteriormente, mulheres eram vistas como posse de seus pais ou maridos e, a partir dessa data, essa lei foi aprovada para que não pudessem mais ser discriminadas pelo seu gênero ou estado civil). Somente na Constituição de 1988 (há 34 anos), as mulheres foram reconhecidas como iguais aos homens e passaram a ter os mesmos direitos e deveres. Em 2018, 5 anos atrás, a importunação sexual (que muitas – senão todas – de nós sofremos desde muito jovens através de cantadas indesejadas ou toque não consentido) passou a ser considerada crime. E somente em 2021 a violência psicológica contra a mulher (atitudes que tenham objetivo de limitar ou controlar suas ações e comportamentos, através de ameaças, constrangimentos, humilhações e chantagens) passou também a ser considerada crime².

Além de sofrermos com todas essas desigualdades e violências, temos também que lidar com a pressão estética, que afeta desproporcionalmente as mulheres³ fazendo-as acreditar que, para controlar seus corpos, precisam controlar a sua alimentação. Sabe-se hoje que dietas restritivas são insustentáveis, inefetivas e causam muitos danos à saúde física e mental dos indivíduos. Diversos movimentos e abordagens anti-dietas e não centradas no peso vêm se popularizando, fazendo com que a luta pela diversidade corporal seja mais um passo em direção a libertação das mulheres.

A cultura da dieta é um sistema de crenças e valores que associa sucesso e saúde a um único tipo de forma corporal: o corpo magro. A partir dessas crenças, lança tendências e dita regras baseadas em mitos propagados sobre alimentação e saúde, reforçando a ilusão de que é possível moldar e modificar os nossos corpos através do controle da nossa alimentação, sendo tudo uma questão de força de vontade. 

Dentro dessa cultura em que vivemos, o estado de saúde e forma corporal são considerados responsabilidades individuais, sem levar em conta o papel importante que determinantes sociais da saúde (entre eles, inclusão social e não discriminção) – e outros fatores como genética, qualidade do sono, saúde mental, uso de medicamentos e disfunções hormonais – desempenham tanto no estado de saúde, quanto no formato do corpo de um indivíduo. Isso faz com que mulheres se culpem pela inefetividade das dietas, sem saber que dietas são feitas para falhar.

Ainda por cima, a cultura da dieta normalizou a ideia de que nossos corpos são públicos e passíveis de serem expostos e julgados, mostrando que a sociedade patriarcal é um dos pilares que sustentam a cultura da dieta. Acredita-se que as mulheres não são boas o suficiente – a menos que consertem seus corpos – pois nos ensinam que “devemos ser agradáveis de olhar pelos olhos dos homens”. 

Desde muito cedo, somos expostas a mensagens que reforçam a crença de que o nosso valor está atrelado à nossa aparência física. Ainda na infância, através de filmes com belíssimas princesas como protagonistas e bonecas Barbie. Nesse cenário, um estudo do Reino Unido mostrou que com 5 anos de idade, meninas demonstram preocupação com a sua aparência⁴.

Até o início dos anos 2000, adolescentes eram bombardeadas por revistas que, além de exaltar a beleza de corpos padrões de modelos e celebridades através de ensaios fotográficos e editoriais de moda, traziam as mais novas dietas do momento e novos ensinamentos de como agradar aos homens. 

Já as gerações atuais são impactadas incessantemente por imagens e vídeos de corpos perfeitos veiculados pelas mais variadas mídias sociais e expostas a diversos mitos sobre alimentação e saúde alimentando crenças sem fundamento. 

Não somos afetadas apenas por esses estímulos externos. A vida inteira internalizamos o machismo, a cultura da dieta e padrões estéticos através da reprodução de discursos machistas e papos sobre dieta e peso vindos de pessoas do nosso círculo de convivência, como familiares e amigos. Quem nunca ouviu frases como “se for gorda, não terá namorado”, ou “homem não gosta de osso” ou até “vai ficar para titia”, como se a coisa mais importante e ambiciosa que uma mulher pudesse almejar é o casamento heteronormativo.

Esse ciclo geracional precisa ser quebrado. Nossas avós aprenderam que precisavam manter-se magras para serem atraentes aos homens e manterem seus casamentos. Nossas mães internalizaram isso, nos ensinaram a autodepreciar nossos corpos e normalizaram atitudes que hoje, com mais conhecimento, sabemos que caracterizam um comer transtornado, como a necessidade de compensar a nossa alimentação e o pavor em engordar. 

A nossa geração internalizou tudo isso que nos foi ensinado pelas gerações anteriores, mas a nossa missão é, uma vez que somos expostos a dados que mostram o quanto a cultura da dieta pode prejudicar a nossa saúde física e mental, questionar esses aprendizados e ensinar as gerações futuras que o nosso valor e a nossa saúde não estão atrelados ao nosso peso. Somos mais do que apenas um corpo.

Entretanto, continuamos perpetuando a cultura da dieta, mitos e falas machistas através da falta de sororidade na sociedade atual. Quantas vezes nas redes sociais vemos mulheres depreciando umas às outras e comparando umas às outras? Comparando ex de famosos com a atual, fazendo críticas aos corpos e reproduzindo fotos de antes e depois?

É difícil nos darmos conta disso pois a cultura da dieta sustenta um mercado muito lucrativo. As indústrias de dieta, cosméticos, beleza, medicamentos lucram muito com a insegurança e a insatisfação corporal das mulheres. A magreza ainda é um status muito valorizado pela sociedade. Mulheres devem estar em um estado contínuo de auto aperfeiçoamento em busca desse ideal. Se não seguirem esse caminho, são rotuladas como preguiçosas, desleixadas e indignas. Embora nem todas as mulheres adotem o ideal de magreza no mesmo grau, é muito difícil escapar. O controle social das mulheres por meio de suas mentes, corpos, tempo, energia e dinheiro é facilmente mantido. 

Quem se beneficia da mulher não pensar? A quem interessa que as mulheres estejam sempre preocupadas com o corpo e com a comida? À indústria da beleza e à indústria das dietas, todas essas geralmente comandadas por homens poderosos. A preocupação com a aparência distrai as mulheres de assuntos mais importantes, como política, igualdade de gênero, inovações e independência financeira. Contar calorias e o medo em engordar e envelhecer ocupam um grande espaço na nossa mente. Impossível não lembrar da famosa frase da autora Naomi Wolf, do livro O Mito da Beleza: “Uma cultura focada na magreza feminina não revela a obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina; Fazer dietas é o sedativo político mais potente da história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada”.

Para promover o feminismo e outros movimentos de justiça social, é necessário rejeitar a cultura da dieta: deixar de policiar corpos e engajar conversas sobre dieta. Interromper a normalização do terrorismo alimentar e do exercício excessivo, abraçar a diversidade corporal e trabalhar a desconstrução de ideais de beleza (e de saúde) internalizados. Ademais, é preciso entender que a cultura da dieta é precursora de inúmeros problemas que impactam a saúde física e mental, como a epidemia de transtornos alimentares, de comer transtornado, de ansiedade, depressão. 

Finalizando, deixo aqui uma declaração de Christy Harrison⁶, uma nutricionista americana sobre o fato de a cultura da dieta ser uma forma de opressão, como tantas outras: “Acredito que somos capazes de mudar o mundo para melhor e que a cultura da dieta é uma das coisas que atrapalham a liberdade coletiva. Porque é difícil acabar com o patriarcado, a supremacia branca, a homofobia, a transfobia e outros sistemas opressores com um estômago vazio, ou com a cabeça cheia de preocupação com o corpo e com a comida”.

 

Ana Carolina Orsin

Nutricionista graduada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP – USP), com aprimoramento em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IPq – HC – FMUSP) e com certificação internacional em Comer Intuitivo (Certified Intuitive Eating Counselor). Autora do livro “A Cultura da Dieta é Tóxica” (disponível no mundo todo através do site Amazon.com) e criadora de conteúdo na página @nutricaorsini no Instagram.

 

 

 

 

 

Referências

  1. ONU – Organização das Nações Unidas. About UN Women. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/about-us/about-un-women
  2. Março Delas: Conheça a trajetória das lutas pelos direitos das mulheres no Brasil (2021) Portal Sesc RJ. Disponível em: https://www.sescrio.org.br/noticias/assistencia/marco-delas-conheca-a-trajetoria-das-lutas-pelos-direitos-das-mulheres-no-brasil/#:~:text=Somente%20em%201974%20foi%20aprovada,no%20g%C3%AAnero%20ou%20estado%20civil. (Accessed: February 27, 2023). 
  3. JOVANOVSKI, N;  JAEGER, T. (2022) “Demystifying ‘diet culture’: Exploring the meaning of diet culture in online ‘anti-diet’ feminist, fat activist, and Health Professional Communities,” Women’s Studies International Forum, 90, p. 102558. 2022. Available at: https://doi.org/10.1016/j.wsif.2021.102558. 
  4. Body Confidence Progress Report 2015 – GOV.UK. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/body-confidence-progress-report-2015.
  5. WOLF, N. O mito da beleza. Rosa dos Tempos, 2018.
  6. HARRISON, C. Anti-diet: reclaim your time, money, well-being, and happiness through intuitive eating. [S.l.], Little Brown Spark. 2019
  7. ORSINI, A. A Cultura da Dieta é Tóxica: desmistificando crenças sobre alimentação e peso com base em evidências científicas. Publicação Independente. 2021
  8. BACON, H. (2019) Feminist theology and contemporary dieting culture: Sin, salvation and women’s weight loss narratives. London: T&T Clark.