Drunkorexia

Provavelmente você já ouviu falar em pessoas que restringem a alimentação ao longo do dia pois sabem que vão beber à noite. Ou que restringem o que comem no dia seguinte a um consumo alcoólico excessivo no dia anterior. São pessoas que usam álcool de maneira frequente e abusiva e possuem a crença de que este uso levará ao ganho de peso.

Apesar de não possuir um termo médico oficial, essa condição tornou-se conhecida por veículos de comunicação como “Drunkorexia”, se refere à sobreposição do consumo nocivo de álcool e transtornos alimentares, e vem sendo alvo de pesquisas nos últimos anos. No meio médico pode ser conhecida também como anorexia e/ou bulimia alcoólica. A prevalência é tão importante que já existe uma proposta de mudança de termo para “Food and alcohol disturbance” (FAD), que traduzido para o português seria algo como “Transtorno alimentar e de consumo de álcool” (Choquette et al., 2018). O fato de não ser classificada oficialmente no Código internacional de doenças (CID-10) nem no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-V) dificulta o diagnóstico e tratamento, uma vez que não existem critérios diagnósticos claros.

Sabe-se que o problema ocorre principalmente em mulheres de idade universitária, mas pode aparecer também em homens e em qualquer fase da vida. Muitas vezes além da restrição calórica estão presentes formas purgativas para eliminar o ganho energético do consumo alcoólico, tais como indução de vômitos, uso de laxantes e diuréticos, ou atividade física compulsiva (Szynal et al., 2022). É estimado que 30 a 50% das pessoas com bulimia e mais de 20% das pessoas com anorexia façam abuso de álcool ou são dependentes da substância (Choquette et al., 2018). A maioria das pesquisas atuais foi feita com jovens mulheres em idade universitária do Canadá e Austrália, mas estes trabalhos apontam uma tendência de 42% das usuárias de álcool se preocuparem com suas calorias, sendo que destas, 37% restringirem a alimentação para poder consumi-lo. É consenso na literatura científica a relação de transtornos alimentares e dependência de álcool e de fato, o estudo australiano apontou que 64% das participantes que faziam uso frequente e abusivo de álcool apresentavam sintomas de transtornos alimentares. O comportamento é mais presente em pessoas com alguma desregulação emocional, motivadas a melhorar o humor. Normalmente têm imagem corporal negativa e sensação de perda de controle sobre o corpo (Griffin & Voght, 2020).

É importante salientar que de início, mulheres com “Drunkorexia” costumam engajar-se em movimentos compensatórios apenas em situações em que haja o consumo alcoólico envolvido, normalmente em padrão compulsivo, ou seja, altas doses numa ocasião específica. No começo, estas situações podem ocorrer esporadicamente, depois tornam-se cada vez mais frequentes. A tolerância ao álcool aumenta, o consumo também, levando à dependência alcoólica e à frequente restrição/ compensação dietética e tradicional caquexia, ou seja, aquele emagrecimento decorrente de desnutrição e outras doenças (Simons et al., 2021).

De fato, o álcool possui 7,1 kcal/g o que representa uma carga energética alta, apesar de não ter nutrientes, por isso são consideradas “calorias vazias”. Assim, um indivíduo que tem a ingestão alimentar diária dentro da média populacional (2000 kcal/dia), se adicionar de forma regular o consumo alcoólico, provavelmente terá um ganho de peso. Como se não bastasse isso, o álcool é uma droga e não pode ser estocado no organismo, por isso tem que ser eliminado do corpo imediatamente. Para que isso ocorra, carboidratos, proteínas e gorduras têm o metabolismo prejudicado, o que vai impactar na glicemia, na formação de triglicérides e colesterol, em perdas proteicas, entre outros. Sem contar que destrói as células intestinais e a microbiota, prejudicando também a absorção de vitaminas e minerais, gerando desnutrição. O alcoolismo leva a mais de 60 doenças clínicas, em todos os órgãos e sistemas, tais como cardiopatias, hipertensão, diabetes melito, anemia, infertilidade, hepatopatias, câncer, entre outras. Também traz enorme impacto social e risco à integridade física, tais como acidentes domésticos e de trânsito, sexo desprotegido e vários tipos de violência (Kachani et al., 2018).

Se os transtornos alimentares e o alcoolismo sozinhos já exigem atenção e tratamento, a sobreposição (ou mais tecnicamente, comorbidade) de ambos é mais grave ainda. A prevenção precoce a respeito do consumo alcoólico é importante, assim como a dos transtornos alimentares. Isso inclui melhorar a autoestima dos adolescentes para que gostem mais de seus corpos e paralelamente, não precisem se alcoolizar para se inserir em grupos.

 

 

 

 

Adriana Kachani

Nutricionista, Mestre e Doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Há 23 anos trabalha no Programa da Mulher Dependente Química do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (PROMUD – IPq – HC – FMUSP), onde coordena a equipe de nutrição. Já teve passagens também pelo Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) e Pró-Mulher, da mesma instituição. Atende na Clínica de Saúde Mental Moreno & Cordás (CESAME) e em consultório próprio. Autora dos livros Nutrição em psiquiatria, Como lidar com o alcoolismo, Como lidar com a seletividade alimentar, e da caixinha de atividade para melhorar a Imagem Corporal. Instagram: @nutrikachani.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

  1. Choquette, EM, Rancourt D, Thompson JK. (2018). From fad to FAD: a theoretical formulation and proposed name change for “drunkorexia” to food and alcohol disturbance (FAD). International Journal of Eating Disorders, 51(8), 831-34.
  2. Griffin BL, Voght KS. (2020). Drunkorexia: is it really “just”a university lifestyle choice? Eating and Weight Disorders, 26:2021-2031.
  3. Kachani AT, Brasiliano S, Hochgraf PB. Como lidar com o alcoolismo – guia prático para familiares, professores e pacientes. São Paulo: Hogrefe, 2018. 94 p.
  4. Simons RM, Hansen JM, Simons JS, Hahn AM. (2021). Drunkorexia: Normative behavior or gateway to alcohol and eating pathology? Add Behav 112: 106577.
  5. Szynal K, Gorski M, Grajek M, Ciechowska K, Polaniak R. (2022) Drunkorexia -knowledge review. Psychiatr Pol , 56(5):1131-1141.