O mundo da Barbie: brincar pode não ser tão inofensivo

No dia 21 de julho de 2023 lançou nos cinemas do mundo todo o tão esperado filme “Barbie” (dirigido pela aclamada Greta Gerwig), o que nos deixou animados para assisti-lo, mas enquanto profissionais de transtornos alimentares, não podemos deixar algumas associações importantes de lado. Ainda mais porque o mundo inteiro (literalmente) está colorido de rosa. Da moda, passando pela decoração, mercado imobiliário, e até o Google – todos se renderam à famosa boneca. 

A Barbie foi criada em 1959 pela empresária Ruth Handler (e lançada pela empresa americana Mattel). Desde então já teve várias versões – contando com outros membros da família – que venderam bilhões de bonecas ao redor do mundo. A boneca virou um ícone, que virou marca e que se tornou veículo para a venda de filmes e série de animação, jogos, roupas, entre outros produtos.

A Patricia brincou muito com a Barbie. Consumidora das bonecas, bonecos, roupas, acessórios, casa, carro e banheira da Barbie. Ela se lembra claramente de pensar, ainda pequena (uns 8 anos, talvez), que jamais seria magra como uma Barbie. E que talvez não tivesse ou não seria digna de ter seu Ken e nem a sua casa perfeita, como era a Mansão da Barbie. Na adolescência, a Barbie se fez presente de outra forma: cantou e dançou com Aqua em um clássico dos anos 90 “Barbie Girl” – aliás, o novo filme traz uma nova versão da música com Nicki Minaj e Ice Spice.  E depois de anos e anos, o mundo da Barbie se apresentou novamente para Patricia, através da maternidade. E repaginado: agora com “Barbie: Life in the Dreamhouse”, uma série de animação com 5 temporadas. O que chama a atenção, além da espetacular mansão fofa da Barbie é o closet – e que closet! É só escolher os looks num iPad, programar e o varão giratório traz o look prontinho num cabide entregue magicamente à Barbie. Um sonho! 

Já o Muriel foi um menino que brincou com bonecas, mas nunca teve uma Barbie por ser cara para a sua mãe comprar. Mas brincou com as de amigas e primas – talvez tenha até mesmo cortado (quase raspado) o cabelo de alguma pobre Barbie, mas isso são apenas boatos. 

E eis que recentemente o Muriel arranca a Patricia do sonho cor de rosa. Conversavam sobre a internalização do padrão de magreza e da associação da magreza com a beleza promovidas pelo mundo da Barbie. E do quanto isso é arraigado, vindo de uma infância remota. E Muriel traz a triste informação de que em 1965 foi lançada a “Slumber Party Barbie” (algo como Barbie Festa do Pijama) que entre os acessórios que acompanhavam a boneca estava uma balança de banheiro cor-de-rosa – no visor o peso de 110lbs (50 kg) – e um manual de como perder peso que continha só uma instrução: não coma! (1). É difícil entender as intenções dos criadores e como não comer se encaixa em uma festa do pijama. E é impossível saber como essa mensagem afetou as milhares de crianças que brincaram com a boneca na época.

Assim como os adultos, as crianças são expostas a ideais altamente irrealistas de forma e peso. Foram feitos cálculos para determinar as mudanças necessárias para que uma mulher e um homem atinjam as mesmas proporções corporais dos bonecos Barbie e Ken. Entre as mudanças necessárias estavam a mulher aumentar 61 cm de altura, 13 cm no peito e 8 cm no comprimento do pescoço, enquanto diminui 15,2 cm na cintura; e para o homem estavam aumentar 61 cm de altura, 28 cm no peito e 20 cm na circunferência do pescoço (2) .

É longa e antiga a discussão sobre a influência negativa da Barbie na auto estima das meninas e na internalização do padrão de magreza e na insatisfação corporal. Muitos artigos investigaram o efeito desta exposição em meninas. Uma pesquisa australiana traz como resultados que a interação com Barbies as encoraja a adotar uma preferência por um corpo magro (3)

Um outro estudo (4)  avaliou a Barbie como uma possível causa para a insatisfação corporal das meninas. Um total de 162 meninas, de 5 a 8 anos de idade, foram expostas a imagens de bonecas Barbie, Emme (tamanho 16 dos EUA) ou nenhuma boneca – e, em seguida, completaram avaliações de imagem corporal. As meninas expostas à Barbie relataram menor estima corporal e maior desejo por um corpo mais magro – mas esse impacto negativo imediato não foi evidente nas meninas mais velhas. Essas descobertas implicam que a exposição precoce a bonecas que simbolizam um ideal de corpo irrealista pode prejudicar a imagem corporal das meninas, o que contribuiria para um risco aumentado de transtornos alimentares e variações grandes de peso (“efeito sanfona”).

Mas se bonecas como a Barbie podem representar um fator de risco para a internalização do ideal de magreza e insatisfação corporal, será que isso pode ser combatido? Os pesquisadores de um estudo (5) pediram a 31 meninas de 5 a 9 anos de idade que se envolvessem em brincadeiras interativas com bonecas disponíveis comercialmente que eram super magras (Barbie e Monster High) ou que representavam uma forma mais realista infantil (Lottie e Dora) e que indicassem os seus próprios tamanhos de corpos e tamanho corporal ideal em uma tarefa de computador interativo antes e depois do jogo. Houve uma interação significativa entre a fase de teste e o grupo de bonecas, de modo que brincar com as bonecas ultra magras fez com que o “ideal” das meninas ficasse mais magro. Outras 46 meninas brincaram com as bonecas ultra magras e depois brincaram com as mesmas bonecas novamente, as bonecas mais realistas ou com carros. O jogo inicial com as bonecas ultra magras novamente produziu uma queda na percepção de ideal para o próprio corpo, mas nenhum grupo mostrou qualquer mudança significativa em seus ideais corporais durante a fase de jogo adicional. Esses dados indicam o benefício potencial de bonecas que representam uma massa corporal infantil realista para a satisfação corporal de meninas e não apoiam a hipótese de que os impactos negativos das bonecas ultra magras possam ser combatidos diretamente por outros brinquedos.

Mais recentemente bonecas com diferentes corpos e tamanhos foram lançadas, visando representar a diversidade corporal do mundo real. Mas será que as crianças gostam dessas novas versões de bonecas que celebram a pluralidade de corpos? Uma pesquisa (6) usou a linha mais inclusiva de bonecas (chamada de  Barbie Fashionista) para examinar as atitudes sobre a forma e o tamanho do corpo em uma amostra de 84 meninas, de 3 a 10 anos de idade. Elas foram solicitadas a atribuir características positivas ou negativas a bonecas que variavam em tamanho e forma (original, alta, pequena e curvilínea) – além de responderem a perguntas sobre suas preferências pelas bonecas e completaram medidas de insatisfação corporal. Os resultados demonstraram maiores atitudes negativas em relação à boneca Barbie curvilínea e atitudes mais positivas em relação a bonecas com tamanho/forma corporal mais magro (a original). A versão curvilínea foi identificada como a boneca com a qual menos queriam brincar. Meninas com maiores níveis de insatisfação corporal demonstraram atitudes menos negativas em relação à boneca original. Os resultados demonstram uma preferência por corpos magros e aversão por corpos maiores. Além disso, sugerem que a simples disponibilidade de bonecas com diversos corpos pode não ser uma intervenção poderosa o suficiente para superar atitudes prejudiciais ao peso. Destaca-se a importância de esforços contínuos para incentivar a exposição e a aceitação de diversas formas e tamanhos corporais em crianças pequenas.

Aliás, na literatura científica há diversos estudos (7) que demonstraram que crianças super jovens (tanto meninas quanto meninos) preferem imagens e brinquedos que favorecem a magreza em detrimento da gordura, mas as razões para essas preferências iniciais exigem mais investigação. Parece que num mundo de bonecas, é bom ser uma Barbie – a clássica, é claro.

Como se percebe por todas as evidências científicas, brincar com uma boneca como a Barbie pode não ser tão inofensivo. Sim, é divertido, mas não sem possíveis efeitos para algumas pessoas, infelizmente. Só temos que cuidar de uma questão: uma boneca sozinha dificilmente é capaz de causar tanto mal. Deve-se somar diversos fatores como a boneca, a cultura da magreza e da dieta, a internalização dos ideais irreais de beleza, os apelos midiáticos e também determinadas configurações psíquicas. 

Importante dizer que o ato de brincar é muito importante, principalmente para as crianças. É um exercício imaginativo que auxilia a elaborar aspectos vividos e até a elaborar conflitos. Brincar é necessário e altamente saudável. Por isso, brinquemos – em qualquer idade, inclusive.

E assim como vimos ao longo do texto, para prevenir possíveis efeitos negativos não basta incluir bonecas que representam a diversidade corporal do mundo real sem contextualizar para as crianças. Como a criança vai querer uma boneca que fuja do padrão se vê os adultos de sua vida zombando de pessoas que fujam do padrão cis branca magra? No mundo da Barbie os adultos também devem brincar e dar o exemplo sobre respeito, inclusão e diversidade.

 

 

 

Patricia Gipsztejn Jacobsohn

Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Especialista em Psicoterapia Psicodinâmica da Pré-Adolescência e Adolescência pelo Instituto Sedes Sapientiae. É coordenadora da Ceppan (Clínica Cybelle Weinberg de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia). Membro do conselho técnico da ASTRALBR (Associação Brasileira de Transtornos Alimentares). Possui capítulos de livros publicados sobre transtornos alimentares, teoria psicanalítica e mídias sociais. Instagram: @patriciagj__psicanalise.

 

 

 

 

 

 

 

Muriel H. Depin

Nutricionista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especializado em transtornos alimentares pelo Ambulim (Programa de Transtornos Alimentares) do IPq-HCFMUSP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), membro do conselho técnico da ASTRALBR (Associação Brasileira de Transtornos Alimentares) e criador do @obarrigapositiva.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

  1. LACEY, Martha de. ‘Don’t eat!’: Controversial 1965 Slumber Party Barbie came with scales permanently set to just 110lbs and a diet book telling her not to eat. Daily Mail, 2012. Disponível em: <https://www.dailymail.co.uk/femail/article-2239931/1965-Slumber-Party-Barbie-came-scales-set-110lbs-diet-book-telling-eat.html>. Acesso em: 02 de julho de 2023.
  2. BROWNELL, Kelly D.; NAPOLITANO, Melissa A. Napolitano. Distorting reality for children: Body size proportions of Barbie and Ken dolls. International Journal of Eating Disorders, v. 18, n. 3, p. 295-298, nov. 1995.
  3. RICE, Karlie et al. Exposure to Barbie: Effects on thin-ideal internalisation, body esteem, and body dissatisfaction among young girls. Body Image, v. 19, p. 142-149, dec. 2016. 
  4. DITTMAR, Helga; HALLIWELL, Emma; IVE, Suzanne. Does Barbie make girls want to be thin? The effect of experimental exposure to images of dolls on the body image of 5- to 8-year-old girls. Dev Psychol, v. 42, n. 2, p. 283-92, mar. 2006.
  5. BOOTHROYD, Lynda G; TOVÉE, Martin J; EVANS, Elizabeth H. Can realistic dolls protect body satisfaction in young girls? Body Image, v. 37, p. 172-180, 2021. 
  6. HARRIGER, Jennifer A. et al. You can buy a child a curvy Barbie doll, but you can’t make her like it: Young girls’ beliefs about Barbie dolls with diverse shapes and sizes. Body Image, v. 30, p. 107-113, 2019.
  7. WOROBEY, John; WOROBEY , Harriet S. Body-size stigmatization by preschool girls: in a doll’s world, it is good to be “Barbie”. Body Image, v. 11, n. 2, p. 171-4, 2014.