Ortorexia Nervosa: uma forma obsessiva de se preocupar com a alimentação saudável

Estamos na era digital, onde as informações chegam muito rápido nas diferentes regiões do nosso planeta. Essa facilidade de acesso tem contribuído para que as pessoas saibam algo sobre diferentes temas como, por exemplo, “alimentação saudável”. É muito provável que você já tenha visto um vídeo nas redes sociais, pelo seu celular ou computador, de alguém, seja profissional ou não, falando algo sobre “alimentação saudável”. Apesar deste ser um tema bastante delicado no que se refere a compreensão do que seria considerado saudável, há certo consenso entre as diretrizes globais quanto aos efeitos benéficos que a alimentação nutricionalmente adequada pode ter sobre a saúde1. No entanto, vale destacar que nem sempre “comer saudável” significa ter bem-estar na sua ampla concepção considerando as dimensões física, psicológica e social2.

A vasta quantidade de informações, comumente superficiais e desarticuladas sobre alimentação e saudabilidade, tem contribuído para a adoção de “comportamentos disfuncionais” (aqui compreendidos como não benéficos) na população, que cada vez mais busca terapêuticas médicas/nutricionais para alcançar um estado de saúde projetado como ideal. Vale esclarecer que se preocupar com “o que se come” não é algo ruim por si só, pois de fato a alimentação pode ter influência sobre a saúde. Contudo, a preocupação excessiva com a alimentação para que seja perfeitamente saudável tem sido entendida como um fenômeno desadaptativo denominado por estudiosos como ortorexia3.

Etimologicamente, ortorexia deriva das palavras gregas “orthós” e “orexsis” que significam correto” e “apetite”, respectivamente3. A literatura científica sugere que “comportamentos ortoréxicos” decorrem de motivos, valores e crenças reducionistas de que “comer corretamente” promove saúde por si só3. Nesse sentido, emerge o termo ortorexia nervosa, cunhado em 1997 pelo médico americano Steven Bratman, para representar uma fixação patológica com a alimentação de modo que o indivíduo seleciona para o consumo apenas os alimentos que ele percebe como promotores da saúde4, 5.

Indivíduos que exibem “comportamentos ortoréxicos” se preocupam intensamente com a “alimentação saudável”, apresentando pensamentos persistentes e perturbadores (obsessão) e condutas inflexíveis estereotipadas (fixação), ou seja, eles comem apenas o que julgam ser apropriado, independentemente de haver orientações que sugerem o oposto. Inquietações frequentes como a composição e produção dos alimentos são também observados na ortorexia nervosa. O resultado de tais comportamentos pode ter impacto negativo em diversas áreas da vida da pessoa como, por exemplo, isolamento social para evitar celebrações onde há comida, sofrimento psicológico quando se come algo “não saudável” e deficiências nutricionais devido à adoção de alimentação monótona6.

Apesar de haver na literatura científica critérios para compreensão de “comportamentos ortoréxicos”5, 7, a ortorexia nervosa ainda não é considerada uma doença ao analisar as diretrizes diagnósticas do DSM-5 e da CID-11. Isso ocorre pois os especialistas ainda não chegaram em um consenso final para definir se a ortorexia nervosa deve ser considerada um transtorno mental independente, um subtipo de um existente ou apenas um tipo de comportamento8. Até que isso seja esclarecido é importante considerar que indivíduos obcecados por alimentos para alcançar a “saúde ideal” podem apresentar comportamentos de risco com prejuízos substanciais sendo, portanto, necessária uma abordagem terapêutica. É importante mencionar que há na literatura9 discussão da ortorexia enquanto fenômeno que se encontra em um continuum iniciando sem preocupação alguma com a “alimentação saudável”, passando por um ponto de equilíbrio onde as escolhas são realizadas de forma consciente e, por fim, atingindo a fixação extrema como um comportamento que causa danos substanciais. Isso sugere que o tipo e o nível de preocupação com a “alimentação saudável” devem ser avaliados cuidadosamente e individualmente para orientar a melhor estratégia de manejo.

Neste ponto, você deve estar se perguntando: qual é a melhor maneira de investigar “comportamentos ortoréxicos”? Como não há critérios diagnósticos oficiais para identificar objetivamente o quadro de ortorexia nervosa, há disponível na literatura instrumentos, conhecidos popularmente como questionários ou escalas, que auxiliam no rastreamento de comportamentos característicos desta condição. No Brasil, as principais escalas disponíveis com evidências de validade e confiabilidade são a Escala de Ortorexia de Teruel10 (Teruel Orthorexia Scale–TOS) e a Escala de Ortorexia de Düsseldorfer11 (Düsseldorfer Orthorexia Scale–DOS). Ambas podem auxiliar tanto em investigações epidemiológicas quanto clínicas, mas deve-se destacar que nenhuma fornece resultados para determinar a presença/ausência de ortorexia nervosa, pois os itens incorporados em cada escala apenas indicam comportamentos específicos. Dito isto, é prudente que um profissional devidamente capacitado busque realizar investigações qualitativas mais aprofundadas ao se deparar com casos sugestivos de ortorexia nervosa de modo a conduzir terapêuticas assertivas9.

Tratar uma condição que ainda não possui diagnóstico oficial pode parecer estranho, mas é importante mencionar que há sugestões para manejar “comportamentos ortoréxicos”. O primeiro passo é procurar um profissional qualificado, ou seja, aquele com experiência no atendimento com abordagem comportamental, pois o foco não será em “o que se come”, mas sim em “por que se come”. Para ajudar o indivíduo, o profissional precisará conhecer o caso em profundidade e depois disso aplicar técnicas visando mudar “comportamentos disfuncionais”, não sendo o esperado a prescrição de uma dieta. Como há evidências científicas de que a ortorexia nervosa se correlaciona com saúde mental precária, incluindo os transtornos alimentares, um acompanhamento multidisciplinar pode ser benéfico de modo que não apenas a relação com os alimentos seja manejada, mas também outras9, 12, 13. A terapia cognitivo-comportamental, por exemplo, torna-se uma técnica interessante para trabalhar a maneira com que o indivíduo processa as informações visando reduzir comportamentos extremos com a alimentação saudável13-15. Em resumo, se uma pessoa experiência danos físicos, psicológicos e/ou sociais decorrentes da obsessão para comer apenas alimentos percebidos como promotores da saúde, há necessidade de atenção para o cuidado.

 

Prof. Dr. Wanderson Roberto da Silva

Nutricionista graduado pelo Centro Universitário de Patos de Minas com experiência clínica em atendimentos nutricionais utilizando a abordagem comportamental. Mestre e Doutor em Alimentos e Nutrição pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Realizou dois estágios no exterior, em Portugal, no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida. Concluiu dois pós-doutorados na UNESP sendo um em imagem corporal e outro em comportamento alimentar. Ministra aulas, palestras e cursos com os temas: nutrição comportamental; nutrição e saúde; metodologia e redação científica; bioestatística aplicada à nutrição; transtornos alimentares; imagem corporal; comportamento alimentar. Tem experiência na realização de estudos transversais, análise quantitativa de dados, validação de instrumentos psicométricos e desenvolvimento de modelos utilizando a técnica da modelagem de equações estruturais. Orienta projetos de pesquisa com temas relacionados a psicometria, imagem corporal, comportamento alimentar, exercício físico, qualidade de vida e saúde coletiva. Presta serviços de supervisão em nutrição e assessoria de publicação de artigos científicos. Instagram: @nutri_wan.

 

 

 

Referências

  1. Organização Mundial da Saúde. Healthy eating 2020. Disponível em: www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/healthy-diet.
  2. Barnhill A, King KF, Kass N, Faden R. The value of unhealthy eating and the ethics of healthy eating policies. Kennedy Inst Ethics J. 2014;24(3):187-217.
  3. Bratman S. Orthorexia vs. theories of healthy eating. Eat Weight Disord. 2017;22(3):381-385.
  4. Bratman S. Health food junkie: obsession with dietary perfection can sometimes do more harm than good, says one who has been there. Yoga J. 1997;136:42-46.
  5. Donini LM, Barrada JR, Barthels F, Dunn TM, Babeau C, Brytek-Matera A, et al. A consensus document on definition and diagnostic criteria for orthorexia nervosa. Eat Weight Disord. 2022;27(8):3695-3711.
  6. Dunn TM, Bratman S. On orthorexia nervosa: a review of the literature and proposed diagnostic criteria. Eat Behav. 2016;21:11-7.
  7. Cena H, Barthels F, Cuzzolaro M, Bratman S, Brytek-Matera A, Dunn T, et al. Definition and diagnostic criteria for orthorexia nervosa: a narrative review of the literature. Eat Weight Disord. 2019;24(2):209-246.
  8. Strahler J, Hermann A, Walter B, Stark R. Orthorexia nervosa: a behavioral complex or a psychological condition? J Behav Addict. 2018;7(4):1143-1156.
  9. da Silva WR, Neves AN, Soler Donofre G, Bratman S, Costa Teixeira P, Alvares Duarte Bonini Campos J. Conceptualizing and Evaluating the Healthy Orthorexia Dimension. In: Patel V, Preedy V, editors. Eating Disorders. Cham: Springer International Publishing; 2021. p. 1-24.
  10. da Silva WR, Cruz Marmol CH, Nogueira Neves A, Maroco J, Bonini Campos JAD. A Portuguese adaptation of the Teruel Orthorexia Scale and a test of Its utility with Brazilian young adults. Percept Mot Skills. 2021;128(5):2052-2074.
  11. Souza H, do Carmo AS, Dos Santos LC. The Brazilian version of the DOS for the detection of orthorexia nervosa: transcultural adaptation and validation among dietitians and Nutrition college students. Eat Weight Disord. 2021;26(8):2713-2725.
  12. Mathieu J. What is orthorexia? J Am Diet Assoc. 2005;105(10):1510-2.
  13. McGovern L, Gaffney M, Trimble T. The experience of orthorexia from the perspective of recovered orthorexics. Eat Weight Disord. 2021;26(5):1375-1388.
  14. Walker-Swanton FE, Hay P, Conti JE. Perceived need for treatment associated with orthorexia nervosa symptoms. Eat Behav. 2020;38:101415.
  15. Mitrofanova E, Pummell EKL, Mulrooney HM, Petroczi A. Using behavioural reasoning theory to explore reasons for dietary restriction: a qualitative study of orthorexic behavioural tendencies in the UK. Front Psychol. 2021;12:685545.