O Estigma da Doença Mental

O título deste artigo é um exemplo de como não se deve lidar com a representação social dos transtornos mentais e com as práticas de reconhecimento do sofrimento psíquico. Espero mostrar porquê e como o uso de certas palavras geram e consolidam atitudes que reforçam a percepção de certas condições sociais, terminando por concorrer para o aumento do sofrimento mental daqueles que já estão vulneráveis quer em função de sua diversidade, prejuízo ou condição

Estigmata no cristianismo antigo, referia-se a aparição de marcas corporais, preferencialmente nos pontos do corpo associados com a crucificação de Jesus Cristo, ou seja, mãos, punhos, tórax e eventualmente a testa, onde fixou-se a coroa de espinhos. Durante muito tempo se discutiu se os estigmas poderiam ser produzidos por causar sobrenaturais, feridas surgidas de modo contingente ou seriam produzidas pela própria pessoa. Neste último caso os estigmas representam provas de um contato mais próximo e íntimo com o sofrimento de Cristo, informando e testemunhando a qualidade de sua fé. Desta maneira a noção teria invertido seu sentido inicial em grego, que designava um traço de caráter, uma deformidade corporal ou um traço de procedência étnica, racial ou cultural, que predispunha o sujeito a um determinado destino. Uma combinação entre as duas acepções se encontrará nos estigmas da “lepra” durante a Idade Média. Naquela época o portador de hanseníase, apresentava decomposição de partes visíveis do corpo, que denotava uma espécie de punição divina, posto que o pecado e a carne se aproximavam teologicamente. O priapismo[1], sintoma que muitas vezes acomete pacientes em estágios avançados da doença era uma confirmação da interveniência luxuriosa e demoníaca do quadro. No entanto, muitas comunidades religiosas formaram-se justamente em torno do acolhimento e misericórdia por tal condição. A partir do século XVII, como mostrou Foucault[2], a loucura teria substituído a lepra, como figura fundamental do “grande mal”, processo no qual, os leprosários religiosos se transformaram em hospícios, os loucos perderam sua condição de sujeitos de uma experiência trágica e passaram a ser objeto de uma consciência crítica que fala por eles, tal como aparece no discurso moral, jurídico, médico e psicológico.

O termo estigma foi popularizado por Goffman[3] no contexto de sua teoria sobre a discrepância e ajustamento entre identidade virtual e a identidade real. Ou seja, quando há uma distância muito grande entre a forma como nos reconhecemos e como os outros nos reconhecem, inicia-se um processo psicológico de ajustamento do indivíduo e de confirmação social do que o estigma representa.  Como vimos o estigma é uma marca que indica uma diferença, que pode ser manipulada em vários sentidos, sendo o mais comum deles a hierarquização social, que leva da discriminação ao preconceito e deste à segregação. Podemos dizer que o estigma acompanha a função interseccional que conecta raça, gênero e classe segunda uma combinação de padrões que organizam ou manipulam os estigmas. Por exemplo, Franklin D. Roosevelt é frequentemente lembrado como o presidente americano que derrotou o nazismo e venceu a segunda guerra mundial para os americanos. O fato de que ele teve poliomielite e usava uma cadeira de rodas parece assumir um papel secundário em sua biografia. Exatamente como os estigmatizados por identificação a Cristo eram em certa medida “escolhidos” e “condenados”.

Quando usamos expressões como “doença mental” e “lepra” estamos intencionalmente exemplificando casos de estigma. As doenças mentais não são doenças como outras, por isso ela foram, a partir de 1973, reescritas como transtornos (disorders). Doenças tem causas definidas, início detectável e desenlace previsível, nada disso se encontra nas doenças mentais, sendo ainda hoje discutíveis a apresentação de marcadores biológicos ou sociais que determinariam os sintomas mentais da mesma maneira que pensamos os sintomas físicos como parte do adoecimento em geral. Ou seja, se historicamente os estigmas são marcas corporais, vemos que o que os torna parte de uma função social segregativa é a sua interpretação como um sinal no interior de um discurso. Ou seja, estigmas dependem sensivelmente de como nomeamos pessoas e condições, eles são produzidos e eventualmente podem ser desfeitos por meio de palavras. Chamar a hanseníase de “lepra” concorre para evocar um imenso passado bíblico, mitológico e metafísico de associações morais e antecipações de destino que prejudicam ainda mais aquele que tem que lidar, a partir de então, com a doença ela mesma, e com a percepção social negativa que esta carrega.

Estigmas em saúde mental reduzem as expectativas de cura ou transformação, atacam a autoestima, intensificando os sintomas psíquicos, dificultando ainda mais as relações sociais, prejudicando o engajamento dos pacientes em seus tratamentos, complicando ainda mais as relações laborais, amorosas e familiares.  É possível reduzir estigmas por meio da abordagem direta das questões sobre saúde mental, partilhando informações, reeducando-se a si e aos outros partilhando fatos e percepções que reduzam a percepção negativa da experiência de sofrimento, decorrente de sintomas psíquicos, mas sobretudo pela consciência que nesta matéria a linguagem importa muito[4].

O primeiro passo nesta direção é entender que os transtornos mentais não são punições, castigos ou deficiências morais, que podem ser tratados por reeducação e esclarecimento. Isso significa “naturalizar” o sofrimento psíquico no sentido de que ele é uma expressão da subjetividade humana ou que em certo sentido não podemos nos entender como realmente pessoas humanas se nos imaginamos desprovidos de alguma forma qualquer de “loucura”. Vejam como alterei o uso da palavra aqui para me ajustar a uma alteração de discurso. Quero dizer algo como “de perto ninguém é normal” e que os sintomas psíquicos são apenas exageros ou decréscimos, intensificações ou inibições, de processo que pertencem a todos nós. Com isso quero incitar o reconhecimento, a solidariedade e a nossa capacidade de reconhecer aquele que sofre com um transtorno mental, como alguém que sofre com uma “doença qualquer”, que pode nos atingir a todos e deve ser tratada como os melhores meios, sem evocar culpa, vergonha ou nojo de qualquer um de nós.

Estigmas frequentemente trazem consigo um sentimento de inadequação diante do qual o sujeito se individualiza em isolamento e em recuo das relações. Ao “assumir” o estigma e interiorizá-lo como parte necessária de sua condição isso cria um conjunto de efeitos sociais e subjetivos que concorrem para o agravamento dos sintomas. Estigmas não são apenas modos de ver um transtorno, eles agem sobre a própria causação ou reforço de sua determinação. Alguém com diagnóstico de depressão, isolado, sem experiências ou contato com outros pode representar um quadro de prognóstico muito pior do que alguém que sofre com a esquizofrenia, mas está engajado em uma rede de cuidado em seu território.  Portanto, mesmo sendo a depressão, assim como a ansiedade, quadros tidos como comuns, que afetarão 40% das pessoas em algum momento da vida, e mesmo sabendo que a esquizofrenia é um transtorno grave, que afeta 1% das pessoas, a primeira condição pode ter um prognóstico muito pior do que a segunda, em função da maneira como se lida com os estigmas.

Sabe-se também que outro critério para prognósticos favoráveis em saúde mental é a capacidade de procurar ajuda e de reconhecer os próprios sintomas. Antigamente chamava-se isso de “crítica” ou “insight” da doença. Muitas vezes a aceitação dos sintomas, tanto aqueles que se ajustam à identidade do sujeito (egosintônicos) quanto os que criam uma dissonância em relação a experiência de si (egodistônicos), está atravessado pelas nomeações, narrativas e discursos que vem junto com o diagnóstico. Neste sentido pode fazer toda a diferença para a a aderência ao tratamento se o sujeito se coloca a tarefa de aceitar sintomas de esquizofrenia e se ele se coloca a diante da aceitação de que ele está louco. Na mesma medida faz toda diferença se ele compreende a loucura como uma experiência criativa ou se ele a percebe como perda da razão, destituição do reconhecimento e silenciamento irreversível.

A capacidade de escutar a própria loucura, de aproximar-se dela, de poder contar sua própria história sem negá-la, nos ajuda muito a escutar e acolher a loucura alheia. Isso ajuda a criar um senso mais justo e honesto sobre os sacrifícios e perdas envolvidos no tratamento, que muitas vezes acompanhará a vida toda. Uma vez reconhecido e enfrentado o estigma, dissolve-se ao recuperar sua dupla valência de diferença liberando sua potência transformativa, sob forma de práticas e narrativas que modificam, na imprensa e na escola, nas instituições e comunidades, a perpetuação do estigma.

O estigma é o que chamamos de patologia do reconhecimento, ou seja, um significante ou palavra que antecipa, consolida e impõe um conjunto de sentidos e significados a alguém, em geral de modo dissonante ou incongruente com a maneira como a própria pessoa interpreta e gostaria de fazer reconhecer sua própria identidade. No caso dos transtornos mentais a função nominativa dos estigmas antecipa, por exemplo, que ele formaria um grupo homogêneo, reservadamente chamados de “loucos”, capaz de combinar traços morais como “incapacidade de obediência a regras”, “ausência de razão ou inteligência”, “periculosidade ou violência”, “risco de contágio”, sem falar em “preguiça ou falta de vontade e fé”.  Existem sim condições psicopatológicas que afetam nossa vontade, juízo ou interpretação do outro, mas é raro que isso ocorra no mesmo quadro. Ou seja, quando falo em “Estigma da doença mental”, no singular, estou exemplificando o primeiro processo gerador de estigmatização, ou seja, generalização. Não usei a expressão “doenças mentais“, deixando supor tratar-se de um grupo unitário e homogêneo que deverá ser tratado, portanto, da mesma maneira.

Em segundo lugar empreguei a palavra corrente “doença” e não o termo técnico “transtorno”, estabelecendo um nível de discurso e comunicação que sugere ao leitor, com seu léxico, vocabulário e nível de entendimento do assunto já está em posição suficiente para formular uma opinião, confirmando tacitamente seus potenciais preconceito sobre o assunto. O risco contrário também existe, ou seja, o uso de expressões conceituais e técnicas, sugere que apenas especialistas ou cientistas podem tratar do assunto, o que indiretamente concorre para a manutenção de estereótipos e preconceitos correntes.

Por fim, ao empregar a noção de “estigma”, ela mesma parece ser intuitivamente compreensível. Quando isso acontece somos levados a pensar em estratégias igualmente “intuitivas” para deflacionar o problema. Podemos imaginar que como se trata de sofrimento psicológico ele não é suficientemente sério ou digno de atenção. No intuito de “naturalizá-lo” podemos negar a realidade dolorosa e ao fim repetir atitudes morais, do tipo, “tenha fé e  pensamento positivo”, estimular a força de vontade ou indiferença “seja forte, não ligue para o que os outros dizem”, empregar o humor para fazer de conta que “isso não é grave”, idealizar o sofrimento mental como se ele fosse alguma “prova divina ou sinal de genialidade dos incompreendidos” ou propor imediatamente soluções mágicas, métodos revolucionários e disciplinas heterodoxas, às vezes retirados do anedotário pessoal.

Tudo isso são formas de “desescutar” o sofrimento. E há um motivo genérico para que isso aconteça. Quando nos aproximamos da loucura alheia esta evoca em nós nossa própria loucura. Quando entramos em contato com o sofrimento alheio este sofrimento nos “contagia”. Daí que o medo de transmissão dos sintomas mentais não seja o mesmo que ser contaminado por um vírus, mas de nos reconhecermos naquele sofrimento, o que nos fará sofrer. Por isso queremos tão rapidamente “nos livrar” da conversa e da proximidade, apresentando soluções. Essa identificação entre sofrimentos pode acontecer tanto pela via da simpatia, quanto pela antipatia. Nos dois casos a diferença representada pelo outro é neutralizada e dissolvida em nós mesmos. Daí que a atitude de escuta do estigma demande empatia e não apenas simpatia, ou seja, tempo e dedicação para que a fala daquele que sofre seja acolhida, reverberada do outro em nós e eventualmente transformada por uma palavra que acrescente ou ajude o outro em seu próprio processo de luta contra o estigma.

Frequentemente, em vez de escutar, de forma precisa e continuada, como o estigma age sobre aquele sujeito em particular, como ele se ajusta ou deflete seus efeitos, como ele pode mobilizar recursos para transformar a si e aos outros neste processo, nos contentamos em silenciar a conversa e interromper a dolorosa partilha de afetos e sofrimentos que supera o narcisismo dos envolvidos e suas reações alérgicas e compensatórias.

 

 

Christian Ingo Lenz Dunker

Nascido em 1966 é psicanalista, professor Titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP. Pós-doutor pela Manchester Metropolitan University. Analista Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, duas vezes agraciado com o Prêmio Jabuti, articulista da Boitempo e da UOL-Tilt, youtuber, coordena o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de mais de 100 artigos científicos, professor convidado em mais de 15 países e 11 livros publicados, entre eles  “Paixão da Ignorância” (Contracorrente, 2020), O Palhaço e o Psicanalista (Planeta, 2018), Transformações da Intimidade (Ubu, 2017) e Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo, 2015) e “Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica” (Zagodoni, 2012) e “Biografia da Depressão” (Paidós, 2021). Instagram: @chrisdunker.

 

 

Referências:

[1] Em referência a Príapo, deus grego que vivia em estado de ereção peniana, o priapismo envolve a ereção prolongada do pênis, geralmente involuntária, persistente e sem excitação sexual, por mais de quatro horas, decorrente de perturbação neurológica, disfunção erétil ou uso de medicação psiquiátrica.

[2] Foucault, M. (1966) História da Loucura. São Paulo: Perspectiva.

[3] Goffman, E, (1963) Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981.

[4] American Psychiatric Association (2022) Stigma, Prejudice and Discrimination Against People with Mental Illness. Disponível em: https://www.psychiatry.org/patients-families/stigma-and-discrimination#:~:text=Stigma%20and%20discrimination%20can%20contribute,diagnosed%20with%20severe%20mental%20illnesses.