Karina Ferreira

Vim dar voz a um sintoma que atravessou minha história e após uma série de repetições, vem sendo transformado e ressignificado…

Meu nome é Karina, sou recém formada em psicologia e desde que me entendo por “ser pensante”, a curiosidade me acompanha: constantemente questionadora e interessada pelas vicissitudes do mundo. Contudo, na adolescência iniciei um percurso pelo caminho assombroso da fome. Assombroso porque mostrou-se escuro, vazio e ao mesmo tempo viciante.

Não passei fome por não ter o que comer, mas para caber em algum lugar, para pertencer, para ser amada. Construí fantasticamente que “não comer” era valoroso, enquanto comer era, vergonhoso, associado à culpa. Provavelmente foi quando eu incorporei os valores da sociedade vigente. Sentia vergonha de comer perto de outras pessoas, em cerimoniais, festas, ou até mesmo na cantina da escola. Então, eu recusava.

É curioso: tentava me identificar com alguém, com algum lugar, com qualquer coisa, recusando. Na anorexia recusa-se tanto: a possibilidade da autonomia, a comida, o outro, a palavra, tornar-se mulher.

Porém, com a recusa vem a fome. E fome intensa, acompanhada por desnutrição, aniquila a capacidade de pensar, de desejar, de sonhar. Acarreta no desaparecimento. E a menina curiosa, perspicaz, determinada e apaixonada pela vida foi perdendo seu encanto, foi desaparecendo.

No início as pessoas elogiavam minhas novas medidas: elogiavam números. Mas depois pareciam ter medo das minhas novas medidas: cobravam números.  E isso girava como um “eterno” fechamento compulsivo e repetitivo: não parecia ter fim. E na falta de uma solução melhor, eu me tratava com minha própria fome. Uma solução que também era armadilha. Percebi que a anoréxica vive carcomida no gozo de seu sintoma, em uma sociedade que fetichiza seu corpo.

Vivi em torno de números, de uma dieta a base de “nada” e, de uma fome insaciável para manter-me desejável para alguém. Mas reivindicava um lugar mudo, separado do campo do Outro. Constantemente, questionava, se em minha ausência, alguém sentiria minha falta e até que ponto o Outro me desejava.

Passaram-se doze anos. Anos exaustivos de fome, desmaio, hipotermia, exercícios extenuantes, terapia, medicamentos, viagens semanais para tratamento em São Paulo, internações, noites sem dormir, etc. Acabei-me por não participar da vida social com as pessoas. Não existia eu… existia a entidade anorexia e um Eu adestrado por essa entidade e pelas instituições que a tratavam. E perdi tanto. Muitas pessoas não acreditavam que eu atravessaria as grades “daqueles” hospitais. Muitas vezes eu também não. Parte das pessoas que conheci, neste percurso pelo caminho da fome, não conseguiram dar um novo sentido a seus sintomas; muitas morreram. Tais pessoas partiram antes de conhecer melhores possibilidades. E aqui estou eu, tentando representá-las.

Após doze anos em tratamento, conheci a psicanálise, que me fez um convite a ocupar uma posição de sujeito diante do meu processo. O processo não foi simples, como se fazem os dizeres dessas palavras. Entre o mudar e o conseguir me permitir realmente algum passo, foram muitas tentativas, muitas idas e vindas, muitas repetições. De certo modo, nossos sintomas nos trazem algum tipo de satisfação, caso contrário, já os teríamos mandado embora. Haja escrita para tantas repetições.

Sou recém-formada em psicologia e, no quarto período da faculdade iniciei minha trajetória pelo campo da psicanálise. Ao percorrê-lo, a sensação que tive foi que minha forma de enxergar o mundo havia sido identificada por “alguém” e que podíamos então compartilhar sobre isso. É importante destacar que este período coincide com o início da minha análise pessoal.

Um pouco depois conheci sobre o feminismo. Foi uma mistura muito interessante para o meu processo de transformação da anorexia. Utilizo este termo porque acredito ser mais propício do que a palavra cura. Eu ressignifiquei meus sintomas, os transformei. Houve um processo de transformação possibilitado pela relação transferencial estabelecida por meio do vínculo analítico.

O desejo por trazer meu depoimento funda-se na vontade de transmitir minha história de transformação, para que você, se também desejar, se disponha a responsabilizar-se pela sua.

Compreendo também que em alguns momentos torna-se impossível desejar qualquer coisa. Então, que minha estória lhe sirva de coragem. Eu também já estive incapacitada de desejar. Segura minha mão?

 

Graduada em nutrição e em Psicologia pelo Centro Universitário de Viçosa – Univiçosa. Pós graduanda em Saúde Mental, Psicopatologia e atenção psicossocial pela Universidade Norte do Paraná. Psicanalista em formação. Atua como psicóloga clínica com ênfase na abordagem psicanalítica em consultório privado. Idealizadora do @projetopluralidades.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *